Espectador Anónimo

Um olhar (in)discreto sobre peças de teatro

Figura 1,  1953, Golconda de Magritte, Papoilas | Tendências do imaginário (tendimag.com).

Sobre

Bem-vindo ao Espectador Anónimo!

Neste site poderá encontrar algumas "críticas" de peças de teatro. Pessoalmente, prefiro chamar-lhes perspetivas, experiências ou reflexões, uma vez que não tenho formação como crítico e não sou propriamente imparcial nos meus textos.


Como é que esta ideia surgiu?

Há muito tempo que vejo peças de teatro, houve muitas que gostei e outras nem tanto. A realidade é que assistir a uma peça não é barato e, por isso, torna-se numa escolha. E houve vezes que senti que desperdicei dinheiro e que podia ter evitado isso. Em Inglaterra e nos EUA, por exemplo, há muitas críticas que nos ajudam a evitar estas situações e a perceber quais são as peças mais indicadas para nós. Contudo, após alguma pesquisa, concluí que, excluindo algumas críticas esporádicas dos jornais, não havia nenhuma entidade dedicada a fazer críticas de peças de teatro em Portugal.  Neste sentido, juntei o útil ao agradável e resolvi criar este site para ajudar outros espectadores!


Figura 3, The 10 Best Theater Performances of 2019 | Time.




A arte é humana, é genuína. É feita por pessoas para pessoas.

"Críticas"

Nora Helmer

De João Lourenço e Vera San Payo de Lemos

No Teatro Aberto


De 8 de março a 11 de abril de 2025

Figura 61 Nora Helmer |


Nora Helmer ou Dora Márquez? Neste espetáculo, conhecemos a história de Nora Helmer, uma esposa devota com três filhos. Contudo, a meu ver, este espetáculo não é sobre a vida desta personagem em particular, mas sobre todas as mulheres. Noutras palavras, é sobre mulheres que se encontram um pouco como a personagem "Dora, a Exploradora": perdidas; mulheres que precisam de um mapa para as guiar, de encontrar um caminho para uma vida melhor, para uma vida livre e independente; mas que, ao mesmo tempo, têm coragem de se aventurar num mundo que desconhecem.

Este é um espetáculo de teatro e de cinema que resulta da reescrita de duas peças: Casa de Bonecas (1879), de Henrik Ibsen, e Casa de Bonecas, 2ª Parte (2017), de Lucas Hnath. Nora Helmer vive um casamento feliz, até que, num dia de Natal, surge um grande problema. A atitude do marido face a este problema, fá-la ver tudo com outros olhos e, por sua vez, repensar toda a sua vida. É um espetáculo sobre o casamento, o amor, a família e o papel da mulher na sociedade.

Pessoalmente, não apreciei muito o texto, era um pouco pobre. O que cativa a maior parte das pessoas quando lê um texto é o mistério que se encontra entre as linhas, entre as palavras ou no seu enunciar. Se percebemos logo tudo, o texto torna-se pouco desafiante e, por isso, deixa de ser interessante. Neste caso, quer o texto, quer a representação eram tão evidentes, que senti que não havia espaço para imaginar.

O aspeto que menos gostei deste espetáculo não foi, no entanto, o texto, mas sim o desequilíbrio entre o tempo de teatro e de cinema. A verdade é que o Teatro Aberto sempre publicitou este espetáculo como sendo de teatro e de cinema, mas confesso que esperava algo mais equilibrado. O filme durou, ou pelo menos pareceu, quase uma hora e meia, enquanto a representação ocupou apenas uma meia hora a quarenta e cinco minutos. Neste sentido, pergunto-me: era preciso tanto tempo de ecrã? O teatro soube a pouco, foi muito fugaz. Este desequilíbrio não se resumia, porém, a uma questão de tempo, mas também a uma questão de conteúdo. O cinema abordava a parte inicial da história (anos 50), que era a mais interessante; em palco, representava-se a fase posterior da vida de Nora Helmer (anos 70), que, na minha opinião, muito menos cativante.

É ainda importante referir que este é um espetáculo relativamente "perigoso". Mas é perigoso porquê? Porque aborda temas muito relevantes, como a liberdade da mulher, o casamento, o machismo..., de uma forma pouco objetiva. Isto é, mistura tanto direitos humanos básicos, como exageros. Aliás, penso que foi o único espetáculo que vi até agora sobre mulheres, sobre o patriarcado, onde não consegui estar do lado feminino, por uma razão muito simples: era demasiado extremado. A meu ver, neste espetáculo, nem a mulher, nem o homem têm razão; pelo contrário, os dois têm atitudes moralmente muito questionáveis. Para me explicar melhor, vou analisar brevemente estas duas personagens. Por um lado, temos um marido que tratava a sua mulher como um adereço, uma propriedade e que era violento, mas que foi abandonado pela mulher e ficou praticamente sozinho com três filhos por criar. Por outro lado, temos uma mulher que, face a este cenário machista, tentava encaixar-se, era quem o marido queria que fosse, concordava sempre com ele... vivia, portanto, a vida de outra pessoa, sem grande liberdade. Contudo, esta sabia manipular muito bem o marido, abandonou os próprios filhos em busca de uma "vida melhor", escolheu não ter qualquer tipo de contacto com eles durante quinze anos e só regressa porque é do seu interesse pessoal ter o divórcio. Eu sou a primeira pessoa a dizer que, se as pessoas não estão felizes, não devem estar juntas, que o essencial é cuidar de nós primeiro, para podermos depois cuidar dos outros... mas a verdade é que, na vida real, isto não é assim tão linear. Na vida real, as pessoas têm responsabilidades e ter filhos é uma grande responsabilidade. Os filhos não são descartáveis ou, pelo menos, não deviam ser. Por que é que Nora Helmer não levou consigo as crianças? Ou então, se era uma mulher tão à frente do seu tempo, por que é que não procurou uma espécie de custódia partilhada? Ou por que é que simplesmente não lhes enviou um cartão de aniversário? Para terminar, gostava também de mencionar a temática do casamento. Neste espetáculo, o casamento oscila entre duas definições muito extremadas. Por um lado, uma definição muito antiquada de casamento, onde a função da mulher é cuidar do marido, da casa e dos filhos. Por outro, uma definição muito falaciosa de casamento, onde este é visto como algo que é incompatível com o amor livre. É claro que a cada mulher deve ter a sua liberdade e independência, mas o casamento não é incompatível com isso. Na minha opinião, casar não é pertencer a outra pessoa, pelo contrário, é escolher estar com ela, envelhecer ao seu lado e isso, para mim, é um ato de liberdade. 

Eu gostei especialmente do cenário da peça, este ia abrindo-se com o passar das cenas. Esta começava com uma sala fechada, sufocante e terminava com um sala ampla, com espaço para respirar. Era como se o cenário fosse um espelho do que se passava com as personagens: pouco a pouco, abriam-se umas com as outras. O som também me surpreendeu pela positiva, pois havia um pianista a acompanhar, ao vivo, todo o espetáculo. No que diz respeito à luz, penso que cumpriu bem a sua função de marcar o início e o fim de cada cena.

Relativamente à interpretação, a minha opinião divide-se. Durante o filme, penso que era demasiado dramática, parecia que estava a ver uma telenovela de época; durante a peça, o tom era muito mais adequado, conseguia seguir bem as ideias e deixar-me levar pelas emoções das personagens.

Quando o espetáculo chegou ao fim, não pude deixar de me perguntar: mas por que é que ainda precisamos de fazer espetáculos sobre emancipação feminina? É, de facto, impressionante como é que quase cinquenta anos depois, ainda falamos sobre temas tão básicos como direitos humanos, como os direitos das mulheres. É muito triste, mas a verdade é que estamos a assistir a um retrocesso da nossa civilização. No entanto, como este espetáculo nos mostra, tanto o teatro, como o cinema, (a arte), são capazes de combater este retrocesso. A arte não só tem a capacidade de defender e de projetar ideias, como de despertar a consciência das pessoas. E é através desse despertar que a mudança acontece. Este espetáculo, independentemente de gostarmos mais ou menos dele, faz-nos ver que há uma Nora Helmer dentro de cada mulher: ou seja, uma mulher que não se conforma com o que a sociedade lhe impõe. Infelizmente, ainda há muitas Noras Helmer adormecidas por aí; resta-nos apenas acordá-las?

Frida Kahlo - Memórias De Uma Casa Azul

De Daniel Céu Silva e Filipa Burnay

Na Boutique da Cultura



De 3 a 12 de abril de 2025

Figura 60 Patrícia Blasquez


Frida Kahlo - Memórias De Uma Casa Azul ou Magdalena Calderón - Memórias De Uma Casa Azul ? Neste espetáculo, conhecemos uma das maiores pintoras do século XX: Frida Kahlo (1907-1954). Uma artista que não era uma, mas múltiplas pessoas: era Frida Kahlo, uma mulher cheia de convicções, de arte, de política, de liberdade… uma pessoa capaz de mudar o mundo; mas também era Magdalena Calderón (nome pelo qual era conhecida antes de iniciar a carreira artística), uma rapariga que cresceu com a tradição. Este espetáculo tem como ponto de partida um quadro de Frida Kahlo chamado: “Duas Fridas”. Neste, vemos representadas duas versões desta figura: uma mais convencional e a outra mais progressista. Noutras palavras, vemos Magdalena Calderón e Frida Kahlo; duas personas que habitam o mesmo corpo, pois apesar de serem de tempos diferentes (passado e presente, respetivamente), ambas fazem igualmente parte da vida, da obra e da própria essência desta pintora. 

Este espetáculo, como já referi, é sobre Frida Kahlo, uma grande pintora mexicana. Uma pintora que teve uma vida muito difícil, marcada por uma série de problemas de saúde, que a acompanharam desde pequena até à sua morte; e por um relacionamento muito complicado com um pintor chamado Diego Rivera. No entanto, esta peça é muito mais do que uma biografia, esta levanta questões muito relevantes, como: o que significa ser-se livre? O que é ser mulher? O que torna as obras de Frida Kahlo universais e intemporais? Será a arte uma forma de lidar com o sofrimento?

O texto do espetáculo era, na minha opinião, bastante interessante, pois levava-nos numa viagem entre a narração, a vivência e a reflexão da vida da pintora. Contudo, confesso, às vezes, havia saltos entre estes três registos que não estavam muito claros. Para além disto, senti que a personagem do homem podia ter sido melhor aproveitada. Isto é, poderia ter havido mais tensão entre este e a Frida, mas acredito que esta falta de tensão possa ter sido uma escolha consciente e com alguma razão. Ou seja, penso que eles preferiram deixar a personagem do Diego Rivera (marido) em aberto, podendo apenas imaginá-la através das palavras da pintora. Houve ainda um outro pormenor que me deixou dividido: o uso de asneiras. Por um lado, penso que tornava a peça vulgar. Por outro lado, era muito pontual e fazia sentido com esta artista; ela adoraria o vulgar, afinal, ela era apaixonada por tudo o que era considerado errado ou, simplesmente, esquisito. Se pensarmos bem, Frida Kahlo era uma mulher comunista, uma mulher das artes, que abraçava a sua fisionomia masculina, fumava, dançava e bebia nas festas... dificilmente haveria uma mulher mais emancipada e julgada naquela época e naquele país.

O que mais me fascinou na peça, não foi, contudo, o seu texto, mas sim a existência de várias "Fridas". O desdobramento desta personagem tornava bastante visual a loucura da artista. Uma loucura que, sem a sua arte, não éramos capazes de compreender, ou pelo menos, de ter acesso; porque a loucura, a complexidade humana, não é passível de ser compreendida, somente explorada e sentida. E, neste espetáculo, tive a oportunidade de presenciar isso, uma figura que era muitas ao mesmo tempo, que pensava e agia de formas muito distintas, oscilando entre o mundo da memória, o mundo do presente melancólico e o mundo sem futuro. 
Frida Kahlo, para além de pintar, também escrevia; era arte da cabeça aos pés. Aliás, a frase que mais gostei de todo o espetáculo era uma citação dela: "Se os nossos olhos vissem almas em vez de corpos, quão diferente seria a nossa ideia de beleza". Atualmente, vivemos numa sociedade cada vez mais egocêntrica e obcecada com um conceito de beleza puramente superficial: ser mais magro, não ter rugas, não ter olheiras, ter uma maquilhagem perfeita, músculos... E a verdade é que a internet e as redes sociais têm um papel crucial nisto tudo, todos os dias somos confrontados com milhares de vídeos e de fotos que vendem caras e corpos, em vez de personalidades. Neste sentido, é  muito importante e, de certo modo, refrescante, assistir a espetáculos que nos relembrem de algo tão básico como a verdadeira essência da beleza: o interior.

É um espetáculo comovente, porque dá-nos uma oportunidade de mergulhar no universo desta pintora e porque é feito por jovens. Os jovens, independentemente do que façam, têm, por si só, uma força. Isto é, por estarem a começar e serem a próxima geração de atores, eles querem ter uma voz na sociedade, querem fazer ouvir-se e essa vontade e desejo transparecem para os espetáculos que fazem.

Eu gostei do cenário, era adequado à época, simples e bonito. Um dos meus aspetos preferidos foi o espelho, pois proporcionava imagens a que não teríamos acesso, se este não existisse. Além disto, penso que as palavras escritas no espelho faziam imenso sentido no mundo de Frida Kahlo, um mundo sem normas. Relativamente ao som, este estava muito presente no espetáculo, acompanhava-o. Era tocado piano ao vivo, sendo, por isso, muito cativante. No que diz respeito à luz, a única coisa de que não gostei tanto foi o blackout no final do espetáculo. Quando este chega ao fim, todas as luzes se apagam exceto a do candeeiro do quarto da artista. Todavia, o facto deste continuar aceso confunde o público e, apagar tudo, a meu ver, é mais dramático e coerente com a vida, a cultura e as próprias obras de Frida Kahlo.

A interpretação, de uma forma geral, foi boa. Houve momentos em que não se percebiam completamente as palavras, pela articulação ou pela projeção e isto, associado a uma certa rapidez, fazia com que não conseguíssemos assimilar algumas ideias. Porém, a verdade é que esta questão foi pontual e era inegável a paixão, a dedicação e a emoção dos atores. Estes conseguiram dar vida a uma figura incontornável da história da pintura.

Quando o espetáculo termina, há uma frase que não me sai da cabeça: "a arte não é uma escolha, é uma necessidade". Os seres humanos são seres criativos por natureza, são seres que precisam tanto de fazer arte, como de a consumir. Neste sentido, não devia ter de ser uma escolha, devia fazer parte de nós, devia ser tão necessário como respirar, afinal é também através da arte que podemos evoluir, enquanto civilização. No entanto, uma coisa é certa: para Frida Kahlo a arte era uma urgência. Face aos seus problemas de saúde física e mental, era a arte que a mantinha sã, não só porque a entretinha, mas porque lhe permitia expressar-se livremente, dar a ver a sua loucura. Ela sentia-se presa no seu corpo e no espaço que a rodeava; era na arte que ganhava asas e que encontrava a sua própria voz, era na arte que se podia expressar como mulher, como cidadã política e, acima de tudo, como a pessoa que era: estranha, aos olhos de uns, e extraordinária, aos olhos de outros.

Festa de Aniversário

De Harold Pinter

No Teatro do Bairro


De 19 de março a 20 de abril de 2025

Figura 59 Peças de teatro: o melhor desta arte para ver e apreciar em Lisboa


Festa de Aniversário ou "oirásrevinA ed atseF"? Neste espetáculo, o grande foco, como percebemos pelo título, parece ser uma festa de aniversário. Contudo, a verdade é que esta peça vai muito para além desta celebração ou, pelo menos, da ideia que temos de uma festa de anos. Nesta peça, este evento é precisamente o oposto de uma festa de aniversário normal: é um acontecimento infeliz e repleto de tensão. É, portanto, tudo menos uma celebração. Mas porquê? Porque Harold Pinter, na minha opinião, parece mais interessado em abordar o ser humano e em expô-lo e às suas relações de poder, de uma forma crua, do que em dar a conhecer uma festa de anos igual a todas as outras. Neste sentido, este espetáculo é uma oportunidade de nos olharmos ao espelho, de sermos confrontados com uma série de vícios e de comportamentos universais e intemporais. Resta então apenas uma pergunta: estão prontos para se verem ao espelho?

Festa de Aniversário é uma peça do dramaturgo britânico Harold Pinter (1930- 2003), escrita em 1957. Esta é sobre um casal que gere uma casa de hóspedes à beira-mar, tendo somente um hóspede: Stanley. Stanley é um jovem pianista que vive frustrado com a sua vida, passando a maior parte do tempo no quarto. Contudo, no dia do seu aniversário, a chegada de dois hóspedes inesperados juntamente com uma pequena festa de anos improvisada resulta numa série de eventos infelizes.

Eu gosto muito das peças de Harold Pinter e esta não foi uma exceção. Contém, aliás, as características mais marcantes deste dramaturgo. A característica mais evidente são os diálogos quotidianos, mas ambivalentes, diálogos repletos de repetições, de silêncios e de pausas; são nesses diálogos que aparentam ser sobre nada e  nessas pausas e silêncios que conhecemos as personagens. Outro aspeto que aprecio muito é a transparência das personagens, isto é, são elas mesmas, sem reservas. Se num momento se escondem nas formalidades da educação, noutro mostram-se completamente, insultando-se até. Também gosto da forma como introduz elementos “fora do normal” na peça, elementos absurdos. É interessante o contraste destes elementos com a realidade “normal” e é ainda mais interessante perceber como é que estes põem as personagens à prova, as suas fragilidades à vista. Além disto, nenhum destes elementos é explicado, há uma série de eventos misteriosos que são deixados em aberto. Este é, talvez, o meu aspeto preferido das suas peças, esta liberdade para imaginar... O que é que Stanley fez? Quem eram aqueles dois visitantes? E qual era a sua relação com Stanley? E o que é que lhe aconteceu? Estas são algumas das perguntas para as quais a peça não nos dá uma resposta, mas uma coisa é certa: dela não me esquecerei tão cedo.

As personagens desta peça são, aparentemente normais, mas, ao mesmo tempo, muito peculiares. Desde um pianista falhado que passa o dia na cama a uma mulher casada com uma paixoneta pelo seu hóspede; de dois homens de "negócios" a um homem que parece casado com o seu jornal ou a uma jovem que gosta de "cavalinho".

É um espetáculo insólito, contudo, senti que o poderia ser ainda mais, sem cair no exagero. Noutras palavras, penso que tanto o lado mais cómico, como o lado mais sombrio e macabro da peça não foram levados até ao fim, ficaram a meio caminho. Não sei se este intermédio foi uma opção consciente ou se foi resultado de um medo de cair no exagero, mas, para mim, o que torna a peça tão impactante é precisamente esse contraste entre estes dois polos tão distintos.

O cenário, na minha opinião, era bonito e servia o espetáculo, mas não era extraordinário. Este consistia numa "guest house", todavia, em termos visuais, nada diferenciava este espaço de uma casa normal; somente o texto e as próprias personagens é que transmitiam essa ideia. O som resumia-se essencialmente à música das mudanças de cena e, por isso, também não me surpreendeu. As mudanças de cena, pelo contrário, impressionaram-me pela sua limpeza e simplicidade. No que diz respeito à luz, esta também não me impressionou, pois não fez mais do que a sua função. Porém, era curioso como esta fazia mesmo parte da peça; é, de certa forma, a luz - ou melhor, a falta dela - que desencadeia uma série de acontecimentos desagradáveis no espetáculo.

Relativamente à interpretação, penso que os atores fizeram um bom trabalho. No entanto, senti que havia alguma disparidade, isto é, alguns atores captavam mais a atenção do público do que outros. Alguns estavam constantemente a trazer coisas novas, renovando energeticamente a cena; enquanto outros, apesar de terem construído personagens muito interessantes e caricatas, caíam numa certa monotonia. Não irei, no entanto, mencionar nomes, pois, como já referi em críticas anteriores, não creio que isso seja construtivo e a minha opinião não deixa de ser só isso: uma opinião. Para além disto, penso que pode ter sido somente um dia "menos bom", acontece a todos e eu prefiro dar o benefício da dúvida. Acredito ainda que isto possa ter acontecido, em parte, pelo adormecimento do público. A relação entre os atores e o público baseia-se em trocas mútuas de energia: se os atores estão a dar o seu máximo, o público vai reagir e dar ainda mais energia aos atores; se o público está desatento, cansado ou inativo, os atores vão sentir e, na maior parte das vezes, isso resultará num enfraquecimento da sua performance. Neste caso, penso que foi um pouco dos dois: os atores não estavam muito presentes e o público também não. Para mim foi muito esquisito assistir a este fenómeno enquanto espectador: por um lado, tinha dificuldade em manter-me concentrado na peça, por outro, foi a primeira vez num teatro em que senti que não devia rir, que as minhas reações eram desajustadas.

Quando o espetáculo chega ao fim, parece que temos um "déjà vu". Afinal, a peça termina praticamente como começou: com uma conversa banal, quotidiana sobre o tempo e o pequeno-almoço. É quase como se houvesse um regresso forçado ao quotidiano, como se este fosse a boia de salvação. Ou seja, apesar dos eventos ocorridos, há uma necessidade de voltar àquilo que já se conhece, de garantir que tudo está normal. Ora, isto faz-me questionar: por que é que precisamos tanto do normal? Por que é que tentamos ignorar e disfarçar com palavras banais e silêncios em vez de viver, de confrontar, de resolver? Para mim a resposta é bastante simples: é mais fácil. A curto prazo é muito mais fácil fingir que está tudo bem e que tudo é como dantes, do que enfrentar a nova realidade. Contudo, a verdade é que é inevitável, por muito que varramos para debaixo do tapete, o lixo regressa, os problemas reaparecem e com muito mais força do que antes; e, um dia, sem darmos por isso, perdemos a nossa identidade e estamos a ser levados para um destino desconhecido. 

PESSOA - Since I´ve been me

De Robert Wilson

No Teatro São Luiz


De 6 a 8 de março de 2025

Figura 58 PESSOA Since I’ve been me - Théâtre de la ville de Paris


Pessoa - Since I´ve been me ou “Pessoa, Since I´ve been us"? Este espetáculo parte de Fernando Pessoa, uma das figuras mais distintas do século XX. Mas será possível pensar neste poeta sem pensar nos seus heterónimos? Ou seja, pensá-lo como uma pessoa só, em vez de várias? Na minha opinião, não, e Robert Wilson tem consciência disso. Neste espetáculo, conhecemos vários "Pessoas", cada um com o seu nome, e não podemos deixar de nos questionar: não somos todos um pouco como Fernando Pessoa? Eu acredito que sim. Todos temos, de certa forma, várias personagens dentro da nossa cabeça, personagens que concordam, discordam, que discutem em línguas diferentes e que pensam de maneiras distintas. Há quem pense de outra forma e chame a isto loucura, mas a loucura, como diz Pessoa em Aforismos e Afins, está "longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana". Aliás, sem ela penso que seríamos seres extremamente simples e aborrecidos, seres sobre os quais nunca se escreveriam poemas e, muito menos, espetáculos.

Este espetáculo, como já referi, procura abordar a vida e a obra do grande poeta português Fernando Pessoa, fazendo alusão aos seus diversos heterónimos: Bernardo Soares, Alexander Search, Vicente Guedes, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. É um espetáculo que ultrapassa a narrativa, que nos convida a entrar num universo cheio de humor, canto, dança e, acima de tudo, imagens e sensações. Conta com a dramaturgia de Darryl Pinckney e com a direção, cenografia e desenho de luz de Robert Wilson.

Nesta peça, falava-se em quatro línguas diferentes: português, inglês, italiano e francês, o que fazia, de certo modo, algum sentido, pois o próprio Fernando Pessoa escrevia em várias línguas. Contudo, a realidade é que construir um espetáculo com tantas línguas não é fácil e tem alguns problemas. O primeiro grande problema é a questão das legendas. Isto é, mesmo percebendo inglês e português, era obrigado a ler frequentemente as legendas, o que era exaustivo. Os textos saltavam de língua para língua e, a certa altura, parecia que estava a assistir, não a uma peça de teatro, mas a uma récita poética. Ver um espetáculo não é, nem acredito que deva ser, ler legendas. No entanto, o problema não foram apenas as legendas, mas também a rapidez com que o texto era enunciado. Já vi espetáculos que envolviam múltiplas línguas em que conseguia seguir o que se passava em cena e, ao mesmo tempo, ler a tradução. Aqui, o texto corria a maratona, sendo, por isso, quase impossível tirar os olhos da tradução. E, quando o fazia, não conseguia perceber a conexão entre o que estava a ser dito e a cena propriamente dita. A única coisa que conseguia captar era uma sensação ou um vislumbre de algo. A obra de Fernando Pessoa não é fácil de ouvir, nem de ler; requer outro tempo, muito diferente do tempo de fala escolhido. Notava-se, todavia, que havia uma consciência desta questão, uma vez que jogavam com a duração e com a repetição do texto. Porém, para mim, isso não foi suficiente. Para além disso, a rapidez do débito associada a uma certa abstração do espetáculo (à ausência de uma linha narrativa clara), tornava-o algo confuso. Esta foi a minha perceção, mas sei que, especialmente relativamente a este encenador, há muitas pessoas que discordam, e com toda a razão. Afinal, somos todos diferentes. Para este simples espectador, não foi um mau espetáculo, foi somente ligeiramente inacessível. 

Confesso também que não percebi a ligação - se é que existia alguma - entre o universo "clownesco" e o de Fernando Pessoa. É evidente que este poeta se desdobrava, ou melhor, era várias pessoas em simultâneo. Porém, o teatro, a ideia de personagens satisfaz o mundo de Pessoa, porquê escolher o "clown" em particular? Por um lado, penso que pode estar relacionado com o impacto visual dos corpos e das expressões. Por outro, não deixo de pensar que pode ser simplesmente uma recorrência de Robert Wilson, que prioriza a experiência estética e sensorial em vez da linha narrativa.

Se tivesse de resumir este espetáculo numa estrofe, diria: "Creio no Mundo como num malmequer,/ Porque o vejo./ Mas não penso nele,/ Porque pensar é não compreender..." (Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos). Noutras palavras: não tentem compreender, sintam! Esta é, a meu ver, a mensagem mais importante deste espetáculo, uma mensagem que é transmitida não só através das palavras, mas principalmente através de autênticas paisagens de luz.

O cenário era muito simples, mas também muito bonito. Este, juntamente com a luz e o som, formava imagens duradouras e marcantes. A luz era, contudo, a protagonista deste espetáculo e, de uma forma geral, de qualquer espetáculo deste encenador. Era surpreendente; Robert Wilson procura a poesia, para além das palavras, no espaço e na luz. Além disto, o cenário, a luz e o som refletiam o mundo dos sonhos que Fernando Pessoa tanto evocava. 

No que diz respeito aos atores, penso que tinham uma presença excelente, tanto a nível do corpo como da voz. Era quase como se houvesse uma corrente elétrica a atravessá-los por todo o corpo. As palavras saíam velozes e cheias de força e emoção, e o corpo era inundado por uma precisão e comédia próprias do trabalho de "clown".

Ao sair do teatro, senti-me esmagado por uns versos de Álvaro de Campos: “E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, /Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, /De haver melhor em mim do que eu.” (Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos). E se eu não for a melhor versão de mim mesmo? E se houver melhor em mim do que a minha própria pessoa? Este receio de Álvaro de Campos é transversal a muitas pessoas, a começar por mim. E é um medo que não podemos evitar sentir, porque a verdade é que nunca saberemos se somos ou se fomos a nossa "melhor versão". O que fazer então? Uma coisa é certa: a morte não é a solução, pois com a morte acaba tudo; ela não nos diz o que poderíamos ter sido ou feito, apenas é. Para além disto, a morte é uma fuga. E a melhor forma para combater um medo não é evitá-lo; pelo contrário, é aceitá-lo. É evidente que nunca saberemos se dentro de nós há um "eu" melhor do que nós, mas, se existir, porque não aceitá-lo? Essa aceitação não deve ser uma derrota, mas sim uma vitória: não estamos sozinhos e temos em nós a possibilidade de sermos melhores; há esperança.

No Yogurt for the Dead

De Tiago Rodrigues

Na Culturgest


De 19 a 23 de fevereiro de 2025

Figura 57 Tiago Rodrigues / NTGent | Culturgest


No Yogurt for the Dead ou "No Choice for the Dead"? O iogurte é, talvez, a refeição mais conhecida dos hospitais. Qualquer pessoa que já tenha passado tempo suficiente no hospital sabe que comer iogurte é uma refeição desejada por todos. Ora, este espetáculo mostra-nos que não há nada mais humano do que comer iogurte. Mas porquê? Porque, mesmo quando se está confinado a uma cama de hospital, ainda há a possibilidade de escolher algo, ainda existe a sensação de estar vivo. Viver é poder comer iogurtes, escrever com caneta azul em vez de preta, é poder escolher não escrever mais do que um título. Neste sentido, este espetáculo é mais do que uma reflexão sobre iogurtes, é uma reflexão sobre o privilégio da escolha. A morte é o fim da liberdade de escolha, o fim das canetas, dos livros e dos iogurtes.

Neste espetáculo, Tiago Rodrigues aventura-se a contar os últimos dias do seu pai. Quando o seu pai se encontrava no hospital, Teresa, uma voluntária, visitava-o frequentemente. Um dia, o pai, que era jornalista, pediu a Tiago que lhe trouxesse um caderno e uma caneta para escrever a sua última reportagem sobre a vida no hospital. Após a morte do pai, Tiago abriu o caderno, mas só encontrou linhas e alguns rabiscos. Tiago Rodrigues procurou então escrever o livro que o pai nunca chegou a escrever. No Yogurt for the Dead é um espetáculo sobre uma voluntária que escuta as histórias de um homem à beira da morte e sobre um livro que ficou por escrever.

O tema que mais me tocou nesta peça foi a questão da despedida. Ou seja, cada vez que nos despedimos de alguém que está próximo da morte, despedimo-nos como se fosse a última vez. Todos os dias que passamos com a pessoa são vividos como se fossem o último. É quase como se o doente morresse sempre que saímos do hospital. Com o passar dos dias, o doente vai morrendo e nós, os visitantes, estamos de luto. Esta realidade tão dolorosa fez-me pensar: o que é que é pior? As pessoas que sabem que vão morrer em breve ou as pessoas que morrem de um momento para o outro, sem aviso? Por um lado, há conhecimento e sofrimento; por outro, há ignorância e injustiça. A verdade é que as duas opções são horríveis; afinal, não há nada mais cruel do que a morte.

Este espetáculo surpreendeu-me por ser biográfico e bom. Todas as obras de arte biográficas correm o risco de serem demasiado pessoais, tornando-se, portanto, inacessíveis ao restante público. Contudo, nesta peça, este elemento não prejudicou a obra; pelo contrário, enriqueceu-a. É tocante saber que esta história aconteceu a uma pessoa, a um familiar de alguém que nos apresenta este espetáculo, independentemente de conhecermos a pessoa. O simples facto de sabermos que ela existia muda completamente a nossa perceção e sensibilidade — ou, pelo menos, mudou a minha. Porém, talvez isto se deva também ao facto de o espetáculo conter factos reais e fictícios. De qualquer das formas, uma coisa é certa: esta mistura entre o real e a ficção mantinha-nos sempre atentos a tentar adivinhar o que era ou não verídico.

É uma peça que pode ser difícil para algumas pessoas, pois levanta uma série de questões existenciais, questões sobre as quais não queremos nem costumamos pensar: como será a morte? Será que, na morte, não estamos sozinhos? E será o que vemos antes de morrer, assumindo que vemos alguma coisa, real? O espetáculo não nos dá propriamente respostas para este tipo de perguntas, somente possibilidades. Cabe-nos pensar sobre isto ou então simplesmente esperar para ver.

É impossível não mencionar a questão linguística, ou seja, a presença de diferentes línguas em palco. Esta é uma recorrência deste encenador, mas é uma recorrência da qual gosto muito. Ele propõe, nos seus espetáculos, um teatro sem limites, sem barreiras culturais e geográficas. Mostra-nos que, no teatro, tudo é possível, que as línguas não são um obstáculo, mas sim uma mais-valia. Aliás, no fundo, apesar das línguas serem distintas, a linguagem é a mesma: a linguagem humana. O único aspeto de que não gosto tanto é ter de ler as legendas, porque sinto que não consigo ver bem as cenas; há sempre alguma coisa que me escapa. E, por isso, sinto-me obrigado a escolher entre um e outro: texto ou cena.

Outro aspeto que tenho de abordar é a questão da despersonalização. Isto é, o facto de as personagens não terem nomes próprios, mas sim características físicas, por exemplo: barba longa e barba curta. Isto conferia ao mesmo tempo alguma comédia e universalidade à peça.

É um espetáculo musical, mas não é um musical. E não é um espetáculo elitista; neste, tudo é tranquilamente explicado. É, por isso, acessível a qualquer pessoa, mas não para qualquer idade, pois contém temas pesados. É um espetáculo que nos mostra que a simplicidade na arte é mais do que suficiente.

O cenário foi provavelmente o que mais gostei de toda a peça. Era uma autêntica obra de arte: tinha volume, textura e fazia lembrar o paraíso – ou, melhor, um hospital do céu. O som tinha um papel muito importante neste espetáculo, pois estava sempre presente. A música não só acompanhava e dava vida à história, como estava dramaturgicamente muito bem justificada. Havia um guitarrista a tocar em cena, que fazia parte da peça como colega de hospital. A luz, para além de criar ambiências, marcava a rutura entre o tempo da ficção e o tempo presente, oscilando entre mostrar as figuras das personagens e mostrar os atores e a plateia. Relativamente aos figurinos, apreciei a utilização das barbas, um elemento tão pequeno, mas que clarificava bem as personagens.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi muito boa. Os atores eram extremamente versáteis, isto é, tanto cantavam e dançavam, como trocavam constantemente de personagens e ainda alternavam, com grande naturalidade, entre a vivência da história e a sua narração. Além disto, é de realçar o metateatro, que, a meu ver, estava impecável. Aliás, este espetáculo fez-me perceber o porquê deste correr mal tantas vezes: é que está muito próximo da realidade. E, por esse motivo, o segredo não está em representar, mas em ser. Ou seja, nesse momento (na maioria dos casos), devem ser os atores a falar com o público, tal como são, apenas com um texto que não é improvisado, em vez de estarem a fingir que falam com o público ou a representar uma personagem.

Quando o espetáculo terminou, havia uma imagem que não me saía da cabeça: a personagem a despedir-se de si mesma, a alma a abandonar o corpo. Confesso que nunca tinha pensado nesta possibilidade e, de repente, fiquei aterrado. Nesse momento, apercebi-me do amor que tenho por mim próprio e do facto de um dia poder ter de me despedir de mim também. Mas quem sabe, talvez não seja um "adeus", mas sim um "até já".

A Família Addams

Uma adaptação portuguesa do musical de  Marshall Brickman e Rick Elice

No Teatro Maria Matos


De 5 de março a 4 de maio de 2025

Figura 56 Teatro Maria Matos


A Família Addams ou A Família Addams? Neste espetáculo, conhecemos a família mais assustadora de sempre. Contudo, rapidamente percebemos que todo este terror é mais exterior do que interior. Ou seja, esta família, aparentemente desumana, enfrenta problemas semelhantes aos das outras famílias: discussões entre marido e mulher, entre mãe e filha, entre pai e filha, entre irmão e irmã... discussões sobre amor, honestidade, traição e ciúmes. A verdade é que estas personagens fazem e defendem coisas terríveis, mas, ao mesmo tempo, têm preocupações e sentimentos iguais aos nossos. Noutras palavras, são, de certa forma, tão humanos ou mais humanos do que nós.

Este musical é uma adaptação portuguesa do espetáculo de Marshall Brickman e Rick Elice. Neste, Wednesday Addams, uma rapariga peculiar de uma família horripilante, apaixona-se por um rapaz normal. Tudo se começa a complicar quando Wednesday confessa ao pai o seu amor e obriga-o a guardar segredo. Ora, Gomez Addams nunca escondeu nada da sua mulher... A situação agrava-se quando as duas famílias (a tradicional e a das trevas) se juntam num jantar e os segredos começam a voar.

Este espetáculo levanta uma questão muito pertinente: o que é ser normal? Normal é o que a sociedade define e, na nossa sociedade, ter ratos em casa, viver numa ruína na floresta, ter instrumentos de tortura, poções e ansiar pela morte... não é normal. Contudo, o normal é um conceito que muda de dia para dia, de ano para ano, de geração para geração. Apesar disto, tenho sérias dúvidas de que a família Addams alguma vez seja considerada normal. Por outro lado, este musical faz-me questionar se há, de facto, alguém normal. Afinal, o rapaz descrito como "normal" nesta peça também receia que a sua família seja anormal. Um rapaz com uma família completamente banal e comum. Portanto, será o normal uma utopia? No fundo, se pensarmos bem, somos todos pessoas diferentes, com definições diferentes de normal e com um medo comum: ser anormal.

Surgiu-me ainda outra pergunta durante este musical: se esta família gosta tanto da morte, por que é que não se matam? Eu penso que a morte para eles é como a cereja no topo de um bolo, para nós. Isto é, é a melhor parte do bolo, uma parte que apreciamos devidamente se comermos primeiro o bolo (a vida). A morte é, assim, algo que eles anseiam com prazer, mas sem grande pressa.

O enredo em si não é muito diferente de qualquer outra história; aliás, até ouso dizer que é algo previsível e cor-de-rosa. São as personagens e o seu universo que tornam este musical tão distinto. As personagens têm todas características muito específicas e exageradas: a mulher elegante e enigmática; o marido apaixonado e excêntrico; a miúda séria e sombria; o irmão maléfico e engenhoso; o tio bizarro; a velha bruxa maluca; o monstro de "Frankenstein"; a mulher croma e com queda para rima; o marido egocêntrico; e o rapaz mais normal de sempre...

Se tivesse de resumir tudo o que vi, diria que: devemos apaixonar-nos pela lua, mesmo em dias de Lua Nova; as trevas de uns são o paraíso de outros; não há nada mais "sexy" do que a morte; uma poção pode ser a nossa salvação; o preto é a cor dos vivos; o amor faz-nos usar bestas; a morte anda por aí com uma foice e, um dia, foi-se; e, quando se começa a rimar, é difícil parar.

O que torna este espetáculo tão inesquecível é a encenação. Ricardo Neves-Neves é um encenador de quem gosto bastante, porque traz sempre coisas novas, mesmo às peças mais conhecidas. Deixa a sua marca, quer seja através de lutas sem contacto físico, de performances dramáticas, de falsos finais... e de outras surpresas que deixam de surtir o seu efeito se as revelar. De uma forma geral, há um certo gozo do artifício, dos clichês, dos exageros do teatro musical, mas na dose ideal.

É um musical assustador, mas não assim tanto! É um espetáculo onde o tempo passa a correr e é perfeito para pessoas de todas as idades!

O cenário fascinou-me; era assombrado e havia uma beleza nesse sombrio, como se tivesse vida própria. Gostei também muito do uso do subsolo, pois desafiava os limites do espaço, contribuindo para a instalação do terror. Relativamente ao som e à luz, é impossível pensar neles separadamente. Aliás, foi um dos poucos espetáculos onde todos os elementos tinham o mesmo peso, onde todos dependiam igualmente uns dos outros para funcionar. O som e a luz, aliados ao movimento, criavam efeitos mágicos e com alguma piada. Também gostei bastante dos figurinos, penso que estavam bastante próximos dos originais. Tratando-se de uma história muito conhecida, cada personagem tem um figurino muito específico, e é quase como se a roupa fosse um reflexo das suas personalidades, podendo, portanto, também ser um testemunho das mudanças do carácter das personagens ou então uma forma de o disfarçar. No que diz respeito à caracterização, esta surpreendeu-me, pois estava trabalhada até ao pormenor. A única personagem que penso que não estava tão fiel aos desenhos originais de Charles Addams era o Gomez Addams, cujo bigode quase não se via e tinha uma estatura elegante. Na minha opinião, penso que podiam ter ido um pouco mais longe na sua caracterização: enquanto na versão antiga este parece um pai de família estranho, nesta, parece um galã espanhol.

Os atores fizeram um excelente trabalho. Tanto o canto como a dança estavam extraordinários, havia uma leveza e fluidez em tudo (seja simples ou complexo), era verdadeiramente impressionante. Para além disto, cada personagem estava muito bem trabalhada; cada uma tinha uma forma de estar e de falar própria, que ia desde grunhidos a problemas de fala subtis.

Quando o espetáculo chega ao fim, não posso deixar de pensar que a felicidade é uma utopia. Não existem famílias felizes, ou, pelo menos, famílias que sejam sempre felizes. Qualquer família que se considere feliz, para além de provavelmente ter vários problemas de comunicação, é uma família muito aborrecida. Como diz Lev Tolstói em Anna Karénina: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira". A infelicidade é o que nos torna pessoas e famílias tão únicas e interessantes. Neste sentido, pergunto-me: não precisamos todos de um pouco de infelicidade nas nossas vidas?

Quando Eu Morrer, Vou Fazer Filmes no Inferno!

De Mário Coelho

Na Culturgest


De 23 a 25 de janeiro de 2025

Figura 55 MÁRIO COELHO - QUANDO EU MORRER, VOU FAZER FILMES NO INFERNO!


Quando Eu Morrer, Vou Fazer Filmes No Inferno! Ou Quando Eu Adormecer, Vou Fazer Filmes No Inconsciente!? Este espetáculo pareceu-me um autêntico sonho febril, desde a primeira até à última cena. Talvez porque dificilmente algum espetáculo ou obra nos consegue proporcionar uma visão infernal; para nós, os vivos, o inferno é uma possibilidade distante - algo em que podemos acreditar, mas que não sabemos sequer se existe ou como é. Neste sentido, os sonhos são provavelmente a experiência a que temos acesso mais próxima da morte, sendo os pesadelos a mais próxima do inferno. Além disto, o único sítio onde podemos efetivamente realizar o nosso inferno é nos sonhos. Afinal, o inferno, pelo menos, no senso comum, é um castigo extremo, sobre o qual não temos controlo nenhum; quando sonhamos, podemos fazer todos os filmes que quisermos. De qualquer forma, uma coisa é certa: este espetáculo mostra-nos que a linha que separa a realidade do sonho ou da morte é muito difícil de definir. 

Este espetáculo parte de um acontecimento peculiar: todos os dias, à mesma hora, dez corpos invadem o apartamento de uma jovem rapariga. Dançam, ocupando o espaço livremente. Assoberbada e assustada, a rapariga dirige-se a estes estranhos e tenta expulsá-los de sua casa, mas sem sucesso. A repetição deste evento leva-a à exaustão e constitui a tragédia da sua própria existência.

A meu ver, o espetáculo aborda um tema muito importante: o poder do medo. Existem efetivamente fatores inexplicáveis (doenças, catástrofes, etc.), fatores para os quais não temos qualquer tipo de justificação lógica, mas existem também outros que são apenas um resultado dos nossos medos. Isto é, por vezes, quando temos muito medo de fazermos certas coisas ou de nos tornarmos certas pessoas, acabamos por seguir esses caminhos. E porquê? Porque o medo atrai o medo, o medo dá-nos a ilusão de proteção, sendo que, na realidade, é a nossa destruição. Neste espetáculo, procura-se "o porquê de tanta merda acontecer"; na minha opinião, a merda atrai a merda. E isto não é nada esotérico, pelo contrário, é bastante concreto. Pegando no exemplo desta peça, uma realizadora resolve fazer um filme para homenagear a mãe, que teve uma história trágica: matou uma das filhas para deixar de ter alucinações, cortou-a aos pedaços e com estes fez uma tarte. Ora, a realizadora depressa começou a ter estas alucinações, a ver pessoas onde não estavam e, por este motivo, a história parece repetir-se com alguma inevitabilidade. Contudo, tudo isto poderia ter sido evitado: a realizadora vivia consumida pelo medo de se tornar como a mãe, e é precisamente esse receio, essa ansiedade, que esta projeta para o mundo que a faz acabar como a mãe, no inferno.

É um espetáculo cheio de humor e com uma pitada de política. Denuncia a situação dos figurantes, as prioridades das produtoras, as frustrações dos atores e dos realizadores, o facto do teatro estar cada vez mais a tornar-se cinema, entre outros. Há, portanto, claramente um público-alvo: a comunidade do teatro e do cinema. Porém, a verdade é que o restante público pode não entender estas piadas, mas irá certamente captar outros aspetos que escapam à comunidade do teatro e do cinema.

Esta nova criação de Mário Coelho tem algumas características comuns aos seus espetáculos anteriores, nomeadamente a imprevisibilidade. Este espetáculo obriga-nos a estar sempre atentos, pois está repleto de camadas; nunca temos bem a certeza do que se está a passar ou do que irá passar. Revela também uma grande consciência da essência de um bom filme de terror: a proximidade à realidade. As pessoas assustam-se mais com histórias próximas do seu mundo do que com histórias fantásticas, e por duas razões: porque está mais perto da vida delas e porque, quando tudo é normal, tudo o que foge da norma vai sobressair e ter muito mais impacto.

Apesar disto, confesso que não adorei um momento do espetáculo: o fim. Os atores contorciam-se numa espécie de ataque epilético, babavam-se, tremiam, suavam, durante uns bons dez minutos. Eu penso que o público, ao fim de um minuto, percebeu a mensagem, a visão infernal foi bem clara. Contudo,  é importante reforçar que esta é a minha perspetiva e, por isso, tem o valor que tem; afinal, eu sou somente um espectador entre muitos.

Este espetáculo é uma experiência visual e sensitiva, semelhante à de um filme de terror. No entanto, sinto que era demasiado longo. Três horas é muito tempo para qualquer espetáculo que comece às oito ou nove da noite, independentemente de ser o melhor espetáculo de sempre. Para além disto, é um espetáculo cómico, macabro e com a dose ideal de confusão.

Relativamente ao cenário, gostei do facto de terem aproveitado o palco inteiro da Culturgest e da mudança constante do mesmo. Com o passar das cenas, este ia ficando cada vez mais despojado. Apreciei também a presença permanente da câmara, em primeiro lugar, porque havia uma explicação narrativa: havia uma personagem que estava a fazer um “making of” do filme; e, em segundo lugar, porque tratava-se de uma peça tão cinematográfica que era interessante termos a várias perspetivas da mesma, perspetivas que, sem a câmara, nunca teríamos oportunidade de ver. Além disto, penso que esta questão deu mais liberdade aos atores, em termos da utilização do espaço. Ou seja, estes não precisavam de se preocupar se o público os via bem ou não, pois havia uma câmara. A luz clarificava o código do espetáculo, por exemplo, quando se ligava a luz geral da sala, o público percebia que fazia parte do mesmo. No que diz respeito ao som, gostei das músicas portuguesas, penso que davam força à cena. 

Na minha opinião, os atores fizeram um bom trabalho. O metateatro, como já referi noutras críticas, é uma das coisas mais difíceis de se fazer bem no teatro. Foram poucas as vezes em que, de facto, acreditei no que estava a ver e não tive vontade de sair da sala por constrangimento e frustração. E esta foi uma dessas poucas vezes. Havia uma simplicidade na forma como os atores conversavam com o público, o incluíam na peça. Senti ainda que os atores deram tudo o que tinham, em termos de corpo e de energia. Todos os momentos, tanto os mais cómicos como os mais trágicos, estavam bem sustentados.

Ao sair da sala, perguntava-me: mas por que é que o ser humano pensa tanto na morte? Será simplesmente porque não a pode conhecer? Será porque sente que, ao pensar nela - seja a escrever, a representar, a cantar... - consegue controlá-la? Ou será porque a morte é um tema inesgotável, intemporal? Eu acredito que todas estas perspetivas fazem sentido, mas sinto que é mais simples do que isto. Falar da morte torna-a mais real e menos assustadora, faz-nos fazer as pazes com ela, porque a verdade é que vivemos com um medo permanente de morrer. Um medo que atravessa todos e que me faz questionar: não será a vida o nosso inferno? 

Escolhas

De Sébastien Azzopardi

e Sacha Danino

No Teatro Villaret


De 20 de fevereiro a  27 de abril de 2025

Figura 54 Força de Produção - ESCOLHAS


Escolher ou não escolher, eis a questão. Este é um espetáculo, tal como o título sugere, sobre escolhas. Mas o que significa escolher? E por que é que é tão difícil tomar decisões? Estas são algumas das perguntas que esta peça levanta. Na minha opinião, escolher significa tomarmos uma posição, decidirmos uma pequena parte da nossa história, da nossa vida. Contudo, isso pode ser tanto uma bênção como uma maldição. Afinal, escolher é ser responsável por aquilo que se escolhe, e quando as nossas escolhas não têm as consequências desejadas, rapidamente surgem a culpa e o arrependimento, sentimentos capazes de nos destruir. Neste sentido, este espetáculo concretiza o sonho de muitas pessoas e de Hamlet, em particular: a possibilidade de não escolher, de deixar que alguém decida o nosso destino. E se pudéssemos deixar as “escolhas da nossa vida” nas mãos de um estranho sentado no público de um teatro? Ou visto de outra perspetiva: e se pudéssemos decidir a vida de outra pessoa, com consequências exclusivamente narrativas? 

Escolhas é uma comédia interativa, escrita por Sebástien Azzopardi e Sacha Danino, onde o público tem o poder de decidir o enredo. Nesta peça, conhecemos Miguel, um homem que trabalha na ourivesaria do irmão de Leonor (a sua namorada), em Leiria. Porém, apesar deste ser o seu trabalho, o seu verdadeiro sonho é ser músico, algo que nunca conseguiu realizar. Vive, portanto, indeciso e infeliz com a vida que escolheu, até que, no dia do seu aniversário, reencontra a sua primeira paixão: Alice, que já não via há muito tempo. A partir deste momento, a história desenrola-se consoante as decisões que o público - ou, melhor, que algumas pessoas do público - tomam, tendo, por isso, cada espetáculo uma história diferente. 

Pessoalmente, penso que o aspeto mais fascinante desta peça é assistir às escolhas do público. É ver o outro a debater-se com as escolhas, ver a dúvida atravessar a cabeça de cada um: devo escolher o que é moral ou imoral? Devo deixar a minha curiosidade escolher ou o meu bom senso? Era interessante testemunhar este momento, porque a hesitação das pessoas, por vezes, devia-se não a um dilema moral interior, mas sim a um medo de julgamento por parte do restante público. Eu, infelizmente, não pude escolher. No entanto, se tivesse tido essa oportunidade, tomava as piores decisões, de forma a perceber o pior cenário daquela história. Gostava muito de perceber até onde é que aquelas personagens poderiam ir. As histórias, a meu ver, despertam o nosso lado mais sádico: queremos assistir a disparates, a catástrofes, porque ali nada nos fará mal; pelo contrário, será catártico. De qualquer forma, a verdade é que esta peça é uma oportunidade única e, efetivamente, se quiser ver outra versão, posso sempre voltar ao teatro e esperar que façam as escolhas que queria fazer ou então ter a sorte de as fazer eu mesmo.

Se tivesse de resumir este espetáculo, diria que: “é preciso ter cuidado com o que desejamos”, “as pessoas são mais do que o seu estereótipo”; “roubar é uma forma de financiar”; “um machão está sempre a um passo muito curto da traição”; “a monotonia faz-nos fazer coisas estúpidas”; “a honra e o desejo raramente estão na mesma página”; “quem não arrisca, não petisca, independentemente de o petisco ser bom ou mau”; “é muito fácil fazermos aquilo de que não gostamos”; e “a maçã é o fruto proibido e o fruto preferido”.

É um espetáculo muito leve e divertido, perfeito para ir em família, com amigos e/ou namorados.

Eu gostei muito do cenário, pois remetia para o universo dos desenhos animados. Além disto, apreciei o facto deste ser "recortado", isto é, o cenário da casa, por exemplo, só envolvia uma parede. Era como se só tivéssemos acesso ao espaço da ação, espaço este que estava sempre em constante mutação; parecia que tinha vida própria.  Relativamente ao som, penso que este tinha um papel fundamental: por vezes, integrava a própria cena, noutras, acompanhava-a, intensificando-a. No que diz respeito a este último ponto, sinto que as músicas foram muito bem escolhidas; estas criavam uma atmosfera novelesca, o que combinava com a peça. Não gostei, contudo, da utilização dos microfones. Por um lado, percebo que o Teatro Villaret tem alguma profundidade e, por esse motivo, os microfones são uma aposta mais segura a nível de som para o público e para a saúde vocal dos atores. Por outro lado, uma das minhas características preferidas do teatro é o privilégio de poder ouvir as vozes tal como são, com as suas imperfeições. O microfone aperfeiçoa as vozes dos atores, desumanizando-as. Quanto à luz, não tenho grandes opiniões, quer positivas, quer negativas. Por outras palavras, não me chamou a atenção, mas penso que cumpriu a sua função principal de guiar o olhar do público. Por último, gostei dos figurinos, pois senti que refletiam muito bem o carácter de cada uma das personagens.

A interpretação foi bastante boa. Aliás, é importante destacar o trabalho, não só de toda a equipa, mas, em especial, dos intérpretes desta peça. Esta deve ser um desafio gigantesco, por dois motivos: pelo desconhecimento do enredo do espetáculo e pelo contacto direto com o público. Os atores, em vários momentos do espetáculo, só sabem a cena que irão fazer a seguir minutos antes de entrarem em cena. Isto significa que estes têm de estar preparados para todas as cenas possíveis, tendo, por isso, o dobro ou o triplo do trabalho. Para além disto, sendo uma peça que vive da interação com o público, é preciso uma grande inteligência e sensibilidade para integrar as respostas do público no espetáculo, com algum humor; algo que estes atores conseguiram fazer com uma perna às costas.

Este espetáculo tem vários finais possíveis. No final a que assisti, o Miguel ficava com a sua mulher, Leonor. Mas isto faz algum sentido? Afinal, é possível ele gostar mesmo dela, apesar de tudo o que lhe fez? Na minha opinião, não é. Se este gostasse verdadeiramente dela, nunca lhe teria feito nada daquilo, muito menos sequer equacionado. Para mim, alguém que ama uma pessoa não tem olhos para mais ninguém. Contudo, independentemente das nossas convicções, a verdade é que esta peça é muito semelhante à nossa vida. Tem vários finais possíveis, finais sobre os quais podemos especular. No entanto, enquanto que neste espetáculo, se não ficarmos contentes, podemos voltar outro dia e esperar por um final diferente; na nossa vida, só temos uma oportunidade, um final possível, que podemos gostar mais ou menos, mas que nunca poderemos prever, nem alterar. Porém, não é esta imprevisibilidade que torna a vida tão valiosa e tão divertida? 

A Colónia

De Marco Martins

Na Culturgest


De 5 a 14 de dezembro de 2024

Figura 53 "A colónia": Oásis de brincadeira no deserto da ditadura


A Colónia ou 25 de abril? Durante o Estado Novo, existiam colónias de férias para os filhos de famílias menos favorecidas. Contudo, este espetáculo foca-se numa colónia em particular: a colónia das Caldas da Rainha, destinada aos filhos dos presos políticos. Nesta, as crianças podiam experienciar o que era viver em liberdade, uma amostra da liberdade que os portugueses conquistaram após o 25 de abril de 1974. Aliás, tal como a Revolução dos Cravos salvou os portugueses, a colónia salvou estas crianças. Estas tinham a possibilidade de conviver com outros meninos e meninas, de aprender e de se expressarem artisticamente. No fundo, pela primeira vez na sua vida, tinham a oportunidade de viver.

Este espetáculo, como já referi, aborda uma colónia de férias, onde dezoito crianças, com idades entre os três e os catorze anos, podiam brincar umas com as outras em paz, durante duas semanas. Para contar esta história, Marco Martins baseia-se numa reportagem da jornalista Joana Pereira Bastos; bem como em documentos e testemunhos de todo o elenco, que inclui participantes da colónia, atores e jovens. O espetáculo também recorre a textos de vários autores, como Bertolt Brecht, Gonçalo M. Tavares, Slavoj Zizek, William Shakespeare, entre outros.

Um dos aspetos mais interessantes desta peça é a questão da liberdade: O que é a liberdade? Na minha opinião, a liberdade é poder fazer o que se quer, desde que isso não interfira com a liberdade do outro. Este espetáculo mostra-nos, portanto, que qualquer regime ditatorial é um atentado à liberdade humana, uma grande ameaça. No entanto, não acredito que seja possível anular completamente a liberdade de alguém. Mesmo nas situações mais difíceis, as pessoas detêm sempre alguma liberdade de escolha. Durante o Estado Novo, muitas pessoas questionavam-se: valerá a pena lutar contra um regime, arriscar ser preso ou morto, ficar longe dos filhos, tudo pela liberdade do país? Neste sentido, penso que liberdade existe sempre, mesmo que mínima; são as escolhas e as  consequências dos nossos atos que, por vezes, podem não ser as mais desejadas.

Para além disto, gostei muito de ouvir estas histórias verídicas contadas, ainda que parcialmente, por quem as viveu. E ouvi-las, não da perspetiva de quem foi preso, mas da perspetiva dos filhos dos presos, que também viveram as consequências da ditadura. Pessoalmente, confesso que nunca tinha parado para pensar nestas crianças que cresceram sem pais e num contexto de silêncio. Estas cresceram fechadas em apartamentos, habituadas a mudar constantemente de casa, desconhecendo o mundo que as rodeava; não sabendo, por exemplo, que existiam pessoas mais velhas, pois as únicas pessoas que conheciam eram os pais e com sorte, os irmãos. Como é que é viver, crescer e ser educado neste confinamento? A minha experiência mais próxima desta situação foi durante a pandemia e já foi muito complicado. Não consigo sequer imaginar o que é crescer quase sem referências, conhecendo o mundo apenas através de histórias, em vez de vivências.

Houve, porém, um ponto que não gostei tanto do espetáculo: o facto de Manuela se ter virado. Manuela foi-nos apresentada como uma pessoa que tinha vivido a história que nos estava a ser contada e que não queria participar no espetáculo. Por esse motivo, permaneceu de costas grande parte da peça. Contudo, a certa altura, acabou por se virar e falar. A meu ver, penso que teria sido mais interessante se tivesse ficado de costas até a cortina fechar; a sua posição teria tido mais impacto.

Este espetáculo, à primeira vista, parece um espetáculo de teatro documental. Todavia, trata-se de um espetáculo de teatro e comunidade: é feito por e para a comunidade. E isto é muito bonito de se ver, especialmente num país onde existem poucos espetáculos de teatro e comunidade. Além disto, é um espetáculo muito divertido e próximo e, ao mesmo tempo, poético e dramático, apesar de não o querer ser. Por último, considero-o um espetáculo extremamente necessário, visto que nos relembra de um passado que é importante mantermos bastante presente na nossa memória. 

O cenário era fascinante, este consistia numa grande casa de dois andares, sendo estes dois bastante distintos. O piso de baixo era completamente branco, conferindo à peça uma atmosfera futurística. O andar de cima, por sua vez, era de madeira, dando-lhe um aspeto mais antigo. Neste sentido, o espaço parecia refletir as duas grandes gerações presentes: a mais nova e a mais velha. A luz desempenhava um papel fundamental, pois não só direcionava o nosso olhar, como intensificava as cenas e dialogava com o próprio espetáculo. Também apreciei o som: havia uma pessoa a cantar e a tocar guitarra durante o espetáculo, acompanhando-o. Além disto, por vezes, um grupo de miúdos juntava-se a cantar canções revolucionárias. Quanto à projeção de vídeo, ao contrário do que é habitual, gostei. Penso que o espetáculo tinha claramente uma faceta cinematográfica, potenciada pelo uso do vídeo. Nas telas era projetado um “zoom” do que estava a ser visto em palco e, como isso só ocorria quando fazia sentido, não senti que estava a assistir a um filme. A projeção funcionava como um jogo, uma extensão do que se passava em palco, enriquecendo o espetáculo.

No que diz respeito à interpretação, penso que todos fizeram um bom trabalho. No geral, gostei do equilíbrio entre os atores e os "não-atores". Havia várias dinâmicas que permitiam a coexistência destes dois grupos em palco em harmonia. Ouvíamos as histórias contadas por quem as viveu e, em seguida, numa espécie de eco, ouvíamos os atores a contá-las. Criava um efeito plástico muito curioso para o espectador. No geral, penso que jogavam muito bem com a ideia de múltiplos narradores. Estes iam passando de pessoa para pessoa e ainda interpretavam personagens, sem o público ficar confuso. No entanto, não gostei muito da presença dos jovens, durante todo o espetáculo.  Senti que era importante haver um cruzamento de gerações, ver as diferentes gerações a refletir sobre o 25 de abril. Especialmente porque são os jovens que terão de enfrentar uma possível ditadura futura. Contudo, a certa altura, senti que eles formavam um grupo um pouco distrator. Ficaram em "autogestão" e, como estavam ao nível da nossa visão, às vezes faziam gestos mínimos que me faziam perder o fio à meada da ação central, que se desenrolava no andar de cima. Apesar disto, em termos de interpretação, foi, sem dúvida, o melhor espetáculo que vi com "não atores".

Quando o espetáculo termina, pergunto-me: o que é viver no silêncio? Independentemente da idade, o silêncio sente-se e corrói. O silêncio é opressor, é, de facto, uma forma de violência muitas vezes ignorada. Atualmente, temos a oportunidade única de podermos gritar a plenos pulmões. No entanto, se temos essa oportunidade, significa que outras pessoas também a têm- pessoas que não respeitam os outros e que desejam silenciá-los. Este é o grande problema da democracia, um problema que se resolve com consciência. Ou seja, com a perceção de que, apesar de podermos gritar, isso não significa que o devamos estar sempre a fazer. Pelo contrário, devemos saber conciliar a nossa voz com o silêncio. É, portanto, esse equilíbrio que devemos procurar: aprender a usar a nossa voz e saber ouvir o outro. 

Macbeth

De Heiner Müller

No Teatro São Luiz


De 14 a 23 de fevereiro de 2025

Figura 52 Macbeth - Teatro São Luiz


Macbeth ou "Macdeath"? Este espetáculo apresenta-nos uma nova versão da peça de William Shakespeare, uma versão onde a morte tem um papel central: como é que se mata alguém? E como é que se vive com isso? Quanto à última pergunta, o espetáculo ensina-nos que há duas formas de lidar com um homicídio: viver com arrependimento ou matar mais pessoas. A verdade é que uma morte leva facilmente a outra morte e a outra... mas porquê? Porque a morte é poder. Matar alguém é tirar-lhe a sua vida, é ter o poder de decidir pela outra pessoa. Noutras palavras, quando se mata, é como se se ficasse com a vida de quem se matou.

Neste espetáculo, reconta-se a história de Macbeth, pelas palavras de Heiner Müller. Contudo, o enredo é o mesmo: Macbeth, um general do exército/barão de Cawdor, encorajado pela sua mulher, mata o rei da Escócia. Face a este acontecimento, Macbeth é coroado rei e, em pouco tempo, mancha o seu reinado de sangue.

Pessoalmente, não consigo dizer se gostei ou não do texto da peça. Por um lado, penso que é interessante, pois dialoga com o de Shakespeare: é poético, mas sangrento; traz ao de cima a crueldade, o lado sombrio de todas as personagens. Por outro lado, penso que era um pouco confuso. A maioria dos textos que partem de um outro têm este problema: assumem que nós sabemos tudo ou quase tudo do texto anterior. Neste caso, senti que o texto exigia que soubéssemos "a priori", não só os nomes das várias personagens, mas quem eram e o que faziam. Contudo, a verdade é que a encenação em si não ajudava muito: os atores estavam constantemente a trocar de personagens. Tudo isto, tornava o espetáculo algo difícil de acompanhar.

Apesar disto, eu gostei da conceção do espetáculo. Isto é, se olharmos para este como um todo: texto, encenação, cenários, luzes, som, figurinos, etc; vemos que o próprio espetáculo é um assassinato. Há uma calma, uma tranquilidade e uma limpeza gerais que remetem para a premeditação e execução de um homicídio. É como se navegássemos dentro do mundo ou até dentro da mente de um assassino.

Não apreciei, no entanto, a encenação "meio contemporânea" do texto. Digo "meio contemporânea" porque tanto havia marcas óbvias de inovação, de desafio, como havia um grande apreço pelo tradicional. A interpretação clássica coexistia com a utilização de telemóveis, o que era insólito. A meu ver, é preferível rasgar por completo, levar tudo ao extremo do contemporâneo, do que ficar num meio termo indefinido.

Gostava ainda de abordar um ponto, que já referi acima: o arrependimento. Este espetáculo levanta-nos várias questões, entre as quais: o que é que nos faz arrependermo-nos dos nossos atos? Será alguma noção de moral? Ou as consequências dos nossos atos? Eu penso que são as duas, todavia, a realidade é que a peça não nos dá uma resposta direta e definitiva. A única coisa que nos parece mostrar com alguma certeza é que o arrependimento é um sentimento que consome as pessoas, que as corrói. A Lady Macbeth é um excelente exemplo disto mesmo, de como o arrependimento nos pode levar à loucura e, consequentemente, à morte. 

O cenário surpreendeu-me pela sua simplicidade. Este não envolvia muitos objetos, nem muitas imagens, não havendo, portanto, o que chamo de "caos cénico". Para além disto, gostei da utilização integral do palco, da sua profundidade. Era como se existissem dois palcos em simultâneo, um mais perto do público e outro mais distante, separados por uma tela transparente. No que diz respeito ao som, de uma forma geral, gostei. A guitarra conferia uma dimensão mais metal, mais rock à peça, era refrescante. No entanto, penso que o volume da guitarra não estava bem nivelado; sobrepunha-se à voz dos atores, ou melhor, ao volume dos microfones e, por isso, houve partes do texto, que não consegui perceber. Todos os outros sons, na minha opinião, funcionavam bem. Estes acompanhavam as cenas com uma pequena pitada de atualidade. Contudo, não apreciei muito as projeções. Aliás, eu não percebi bem a sua função; afinal, a neve e a floresta eram imagens realistas e com demasiada informação, face ao cenário simples e despojado. Relativamente à luz, é de mencionar o uso das luzes estroboscópicas. Este não me fez grande confusão nesta peça, pois contribuía para a instalação de um ambiente sufocante. Quanto ao figurino, confesso que, inicialmente, não apreciei muito. Este consistia num dos figurinos mais usados na história do teatro contemporâneo: calças de fato de treino e casaco pretos. Porém, no final do espetáculo, quando matam o Macbeth, fez muito sentido para mim. Remeteu-me para a ideia de encobrir do assassinato, sendo as roupas, portanto, uma forma de se passar despercebido, de não se ser descoberto.

No que diz respeito à interpretação, a minha opinião divide-se. Alguns atores conseguiam captar a minha atenção e transportar-me para um universo de imagens e de sensações, através das palavras. No entanto, havia outros atores que não tinham muita presença, nem corporalmente, nem vocalmente. Eu não conseguia perceber algumas partes dos textos que diziam, e isso era um pouco frustrante.

Quando o espetáculo termina, pergunto-me: haverá algum tipo de moral nesta história? Afinal, Macbeth e a sua mulher sofrem as consequências dos seus atos. Mas e todas as outras pessoas que foram assassinadas, durante o reinado? O que fizeram para o merecer? Muitas não fizeram nada. Neste sentido, penso que se trata de uma peça menos sobre moral e mais sobre a vida real; sobre a complexidade, a hipocrisia e a injustiça do mundo; e sobre a nossa incapacidade de fazer algo em relação a isso. A única coisa que podemos fazer é não nos tornarmos em Macbeth ou em Lady Macbeth, isto é, em pessoas que creem ter o poder de decidir quem vive e quem morre, em pessoas que se consideram Deus. Por outras palavras, a única coisa que podemos fazer é resistir ao nosso lado mais sanguinário.

Fátima

De Filipe La Féria

No Teatro Politeama


De 5 de dezembro até 30 de abril de 2025

Figura 51 Fátima, o novo musical de La Féria - Renascença


O que aconteceu a 13 de maio de 1917, em Fátima, foi um milagre ou uma ilusão? No espetáculo Fátima, percebemos que, de 13 de maio a 13 de outubro, aconteceu um verdadeiro milagre, um milagre que vai para além das nossas crenças. Isto é, o milagre de ver tantas pessoas unidas pela mesma causa. Um milagre no qual não é preciso acreditar, trata-se de um evento histórico muito emocionante e bonito. Um evento que nos dá esperança face ao mundo individualista e fragmentado em que vivemos. 

Este musical, tal como o nome sugere, conta-nos um dos episódios marcantes do século passado: as aparições de Fátima. Contudo, nesta ópera-rock, procura-se abordar este momento histórico de uma forma relativamente imparcial. Ou seja, mostrando os diferentes pontos de vista. Por um lado, assistimos à dificuldade de Lúcia, de Jacinta e de Francisco de se anunciarem como mensageiros de Nossa Senhora, num país onde a religião significava perseguição; por outro lado, assistimos à revolta e à racionalidade dos políticos e dos ateus e ao sofrimento de vários cristãos, perante tal heresia. Trata-se, portanto, de um espetáculo que dá voz a todas as personagens, cabendo ao público fazer os seus juízos de valor.

Neste espetáculo, somos confrontados com uma série de temas interessantes, como: a fé, a censura, a ofensa, a razão e o amor. Porém, o que mais me suscitou curiosidade foi a existência e a inexistência de fé, perante algo inexplicável. Durante este musical, tornou-se muito claro, para mim, que, a maioria das pessoas (crentes ou não) só acredita num milagre se o vir a acontecer, se houver alguma espécie de prova. Caso contrário, não acreditam. Ora isto faz bastante sentido, quando falamos de ateus e de agnósticos. No entanto, com os crentes, não deveria ser assim. Acreditar, seja em que Deus for, não é algo matemático ou racional, é algo que requer um salto de fé. É acreditar, apesar de todas as provas contrárias. É acreditar porque se acredita, sem esperar nada em troca. E, neste espetáculo, vemos vários cristãos a condenarem os pastorinhos, a chamarem-nos de burros e de hereges. Isto fez-me então perceber que todos os crentes, antes de serem crentes, são pessoas, são seres racionais cheios de dúvidas. 

Houve, contudo, um aspeto do espetáculo que me deixou muito desconcertado e que tenho de abordar: a questão do "playback". É, de facto, impressionante como é que ninguém escreve e/ou fala sobre o "playback" nos musicais de Filipe La Féria. Os atores só cantam em tempo real em dias importantes, ou seja, se vier a comunicação social ou alguma pessoa relevante, como o Presidente da República. Em todos os outros espetáculos, estes fazem "playback", mas cantam por cima de modo a "disfarçar" ou a tornar a experiência o mais "autêntica" possível. E o resto do público, não merece ouvir as músicas ao vivo? Penso: "talvez seja para poupar as vozes dos atores" ou "talvez seja pelo facto de dançarem". Porém, quando à primeira hipótese, é por esse motivo que existem atores substitutos e, quanto à segunda, os atores não dançam muito neste musical. Além disto, eu já vi vários musicais no West End, em que os atores não fazem "playback" e dançam bastante. Face a esta situação, pergunto-me: não contratam substitutos por falta de dinheiro? Contudo, não me parece que aí resida a razão, uma vez que o Teatro Politeama é um teatro privado. Surge-me então outro pensamento: "se calhar não há dinheiro para contratar os substitutos, pois este musical envolve um elenco de quarenta atores". Todavia, destes quarenta atores, são poucos os que cantam a solo. E em coro dá perfeitamente para disfarçar inseguranças e problemas vocais. Neste sentido, seja qual for o motivo, penso que isto é foleiro. Afinal, vendem um espetáculo extraordinário e o público compra bilhetes, sem saber que vai assistir a um espetáculo parcialmente gravado. E, infelizmente, na maior parte das vezes, este nem se apercebe, visto que só quem se senta nas primeiras filas é que consegue, mais facilmente, reparar.

Gostava ainda de mencionar uma característica dos espetáculos de teatro musical que aprecio e que é bastante evidente neste espetáculo: o público aplaude no final de cada cena. Isto mantém-nos, enquanto espectadores, muito mais atentos. Não desviamos o olhar até a peça acabar, apreciamos cada momento do início ao fim, como se cada cena fosse, por si só, um espetáculo. 

O cenário no Teatro Politeama nunca deixa de me surpreender. O espaço é constantemente alterado e desdobrado, é, de facto, um teatro com recursos extraordinários. No entanto, em termos de conteúdo, não apreciei muito. Neste musical, o cenário era muito literal. Ou seja, o local onde se passava a história correspondia ao espaço que víamos em palco. Nesse sentido, não havia grande surpresa, era algo previsível e pouco original. Relativamente ao som, às músicas, eu gostei. A guitarra e a bateria do instrumental proporcionavam uma dimensão rock a esta história religiosa, criando um contraste engraçado. A luz marcava, essencialmente, o fim e o início das cenas, tendo, por isso, o papel também fundamental. Para além disto, gostei muito do uso das velas, foi visualmente muito bonito.

No que diz respeito à interpretação, penso que os atores fizeram um bom trabalho. No geral, era tudo muito intenso, cada palavra (falada ou cantada) era vivida, sentida. A emoção percorria o corpo todo até à espinha. Esta é uma forma de fazer teatro musical que não é a minha preferida, contudo, é indubitável o trabalho, a paixão e o talento de cada ator. Todas as palavras eram percetíveis e havia uma grande leveza e musicalidade no corpo e na voz de cada ator. Estes viviam cada momento como se fosse o primeiro e isso é comovente de se ver.

Quando a cortina se fecha, percebemos que, independentemente das nossas crenças, este espetáculo relembra um grande privilégio que temos atualmente: a liberdade. A verdade é que devemos agradecer por vivermos num país livre, num país onde podemos pensar, reunir, rezar e gritar, sem estarmos sob a ameaça de sermos presos. Ao mesmo tempo, Fátima leva-nos a olhar para o mundo, para o estado das coisas, e a refletir. Faz-nos pensar sobre o estado a que alguns países já chegaram e a que nós, portugueses, também poderemos chegar - ou, melhor, regressar - num piscar de olhos...

CONSTRUÇÃO, sobre Três Dramas Históricos

De Gertrude Stein,

No Teatro Do Bairro


De 22 de janeiro a 21 de fevereiro de 2025

Figura 50 Teatro do Bairro . Teatro . Cinema . Dança . Música


CONSTRUÇÃO, sobre Três Dramas Históricos ou DESCONSTRUÇÃO? Este é um espetáculo que se apresenta em estado de construção. No entanto, pergunto-me: não será mais um espetáculo de desconstrução? Afinal, este desconstrói a ideia, que a maioria das pessoas tem, de teatro. Quando se vai ver uma peça de teatro, há uma certa expectativa. Há uma expectativa que varia de pessoa para pessoa, consoante o seu nível de familiaridade com esta arte. Por norma, espera-se ver uma peça com início, meio e fim; não necessariamente no seu sentido literal e tradicional, mas algo que tenha uma lógica. E por lógica entende-se uma sequência de acontecimentos, de momentos, algo que o público consiga seguir e compreender. Ora, neste espetáculo, passa-se precisamente o oposto. Não existe qualquer tipo de lógica, quanto muito existe uma nomeação. Isto é, são anunciados três dramas históricos, mas não os chegamos de facto a testemunhar e/ ou a perceber, como estamos habituados. Se isto é algo novo? Não. Contudo, a verdade é que continua a surpreender o público, pois não é comum. Atualmente, não é muito comum assistirmos a um espetáculo que desconstrói o teatro, que o desdobra, que o desmultiplica...

Este espetáculo parte da trilogia: Três Dramas Históricos, de Gertrude Stein (1874-1946). Contudo, neste não encontramos qualquer vestígio de um drama histórico. É tudo tão absurdo que não encontramos qualquer tipo de sentido. Encontramos somente palavras, rimas, cores, objetos. Encontramos um "presente contínuo", um presente que se renova a cada frase, a cada respiração.

Um dos aspetos que mais gostei desta peça foi, sem dúvida, esta vivência do instante. Cada frase, cada palavra só existia e só poderia ser compreendida no momento em que era proferida e era também nesse mesmo instante que se esgotava. Neste sentido, o público era obrigado a aproveitar cada momento, a habitar o presente, largando o passado e o futuro. No fundo, este era convidado a ser uma criança outra vez. Aliás, de uma forma geral, penso que todo o espetáculo se inseria num universo infantil. E quanto a esta questão, a minha opinião divide-se. Por um lado, sinto que o texto pedia esta dimensão, através da rima, dos antónimos, dos sinónimos e das repetições. Além disto, gostei bastante da inocência e da expressividade que habitava as palavras e os gestos dos atores. Por outro lado, pergunto-me se não teria sido mais interessante contrariar esta tendência, esta camada mais evidente do texto e do espetáculo. Teria sido uma dificuldade acrescida e o resultado seria certamente completamente diferente. Se teria sido melhor ou pior? Nunca o saberemos. 

Se tivesse de resumir este espetáculo em poucas palavras, diria que: há muito dinheiro; há pouco dinheiro; há uma herdeira; há um filho; há uma mulher para ter o filho; há uma rua; há um edifício; há uma esquina; há eles e elas; há "they and they"; há um campo; há um leão; há perigo; e não há perigo. Na realidade, há tudo o que quisermos, tudo o que conseguirmos imaginar.

É um espetáculo muito visual e sensitivo. Um espetáculo que faz falta na sociedade solitária e racional em que vivemos. 

Eu gostei particularmente do cenário, pela sua simplicidade. Inicialmente, existiam várias divisórias pretas que, dispostas lado a lado, criavam corredores, acentuando a ideia de jogo. De repente, todas as personagens escondiam-se ou víamos apenas uma cabeça... Mais tarde, apareceram umas portas de vidro que, com a ajuda da luz, proporcionavam uma ilusão de ótica engraçada. Cada personagem multiplicava-se. A luz, para além de potenciar o cenário, definia o início e o fim de cada drama histórico. O som também tinha um papel importante: induzia as personagens ao movimento, à coreografia, reforçando o carácter infantil da peça. O figurino foi, porém, o que mais apreciei de todo o espetáculo. Os padrões, o volume, a junção do clássico com o contemporâneo tornavam-no numa autêntica obra de arte, numa pintura, numa paisagem. É ainda relevante referir que as vestes clássicas acompanhadas por ténis All Star eram, talvez, o único vestígio de drama histórico deste espetáculo.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi muito boa. O movimento estava claramente trabalhado até ao pormenor. Havia uma partitura corporal e musical que era milimetricamente respeitada. E o mesmo se passava com a voz, havia ritmo, havia vida. Para além disto, havia algo no olhar dos atores. A projeção de um imaginário qualquer, um imaginário ao qual não tínhamos acesso. E isso era muito interessante de observar, relembrava-nos, sobretudo, da impossibilidade de acedermos a este objeto artístico racionalmente.

Quando o espetáculo terminou, senti-me um pouco desorientado. Foi o primeiro espetáculo onde decidi não ler a folha de sala antes de assistir à peça, afinal não deveria ser preciso ler nada para conseguirmos entender um espetáculo. Por isso, tentei durante uns bons dez minutos seguir a peça. Obviamente que foi impossível, cada vez que entendia uma frase, perdia-me na segunda ou na terceira que a sucediam. Era como se todas as portas se fechassem à minha frente. Deste modo, o espetáculo teve um efeito ainda maior do que se tivesse lido a folha de sala. Fez-me repensar o teatro, reaprendê-lo, procurar novas linguagens. E, acima de tudo, fez-me perceber que fazer teatro não é mais do que saber brincar, saber jogar uns com os outros.

Tudo A Que Se Chama Nada

De Carla Bolito

No Teatro São Luiz


De 11 a 26 de janeiro de 2025

Figura 49 Tudo A Que Se Chama Nada |


Tudo A Que Se Chama Nada ou Nada A Que Se Chama Tudo? Este é um espetáculo que nos mostra que tudo é nada e que nada é tudo. Afinal, é por todas as "coisinhas de nada", por tudo a que se chama nada, que se bate no fundo. O nada nunca pode ser só nada, porque, no fim do dia, são esses vários nadas, é "esse tudo" que rompe relações. Contudo, nós vivemos sob a ilusão de que o nada é de facto nada, e, por esse motivo, deixamos passar coisas que nos incomodam, até um dia explodirmos, até um dia as nossas relações terminarem, até um dia encontrarmos uma solidão e um vazio absolutos.  E é nesse vazio, como é referido na peça, que nos deparamos com a verdade: a nossa maior adversária, porque se defende de tudo e todos à partida, sem necessidade de argumento. Contra ela não há argumentos, pois ela é o argumento indiscutível. Ora, o que fazer perante isto? Eu penso que o melhor que temos a fazer é aceitá-la e escolhê-la desde o início.

Este espetáculo resulta da junção de duas peças de Nathalie Sarraute: Por tudo e por nada e Aqui está Ela. Na primeira, quase se destrói uma longa relação de amizade por um "que bom, hã" (com uma suspensão e subida de tom). Na segunda, um homem quase enlouquece pela possibilidade de uma mulher, que ouviu a sua conversa com um amigo, discordar do que ambos estavam a dizer. São-nos, portanto, contadas situações onde acontecimentos, aparentemente insignificantes, ganham proporções gigantescas.

Os temas mais abordados neste espetáculo são a condescendência e a intolerância. A condescendência é algo subtil, que está dentro dos limites da educação. Por isso é, na minha opinião, mais perigoso, passa facilmente despercebido. Na condescendência, não importa o que é dito, mas a forma como é dito, o tom. Nesta peça, tudo é levado a um exagero, mas é um exagero com o qual me identifiquei muito. A condescendência é uma forma de sermos maus uns para os outros discretamente e que tem vindo a reunir cada vez mais adeptos. A intolerância é um pouco mais óbvia, visto que ser intolerante é não respeitar o outro, é ser mal-educado. Mesmo assim, a intolerância desta peça é ligeiramente mais discreta e mais comum da que se costuma falar em sociedade. Eu revi-me na personagem "intolerante" e tenho a certeza que muitos outros espectadores também. A intolerância vem da nossa vontade de uniformizar o mundo, através dos nossos princípios. Alguém discordar connosco leva-nos quase à loucura: como é possível que alguém pense tal coisa? Não nos faz sentido, nós queremos controlar, queremos que o outro pense como nós. É evidente, para a maioria das pessoas, que a outra pessoa tem a liberdade de pensar e de dizer o que quiser, desde que respeite os outros. No entanto, às vezes, esta liberdade mexe connosco, ou seja, o facto de não podermos saber o que o outro está a pensar ou de simplesmente não podermos convencê-lo. Este pode pensar e dizer o que quiser sobre nós e sobre as nossas ideias e não há nada que possamos fazer para mudar isso. 

O único aspeto que não gostei desta peça foram as entradas e saídas de cena. Senti que eram demasiado longas, os atores tinham de dar uma volta desnecessária para entrar e, algumas vezes, para sair de cena. Penso que tirava força à cena, amolecia-a. 
Foi, contudo, um espetáculo muito interessante. Um espetáculo que marca, não pelo todo (as palavras), mas pelo nada (os suspiros, os olhares, as pausas). Isto é, tudo o que se passava entre as palavras. Apesar disto, penso que o espetáculo morreu um pouco no final da primeira parte (da primeira peça). Dei por mim a pensar noutras coisas, no entanto, não acredito que tenha sido um problema do texto, pois era muito rico. Penso apenas  que, a certa altura, estava sempre tudo no mesmo registo: os movimentos, as intenções e a forma de dizer o texto. A discussão complexificava-se e eu ia-me perdendo nas palavras, parecia uma repetição eterna. 

Eu apreciei particularmente o cenário, este consistia numa galeria de arte, com dois quadros iguais, mas em escalas diferentes: um quadro grande pendurado de costas para o público e um mais pequeno virado para o público. Este contraste de tamanhos criava uma dinâmica engraçada. Para além disto, quando as pessoas passavam por trás do quadro grande, só se viam os pés, sendo, por isso, algo cómico. Também gostei bastante do papel que caía do "céu", parecia uma "mensagem divina" ou, melhor, uma "mensagem da verdade".  Os figurinos apresentavam um contraste interessante face a este ambiente requintado e erudito que o cenário inspirava. As personagens, com as suas bebidas com cubos de gelo, levavam roupas formais, mas amarrotadas.

Relativamente aos atores, penso que fizeram um bom trabalho. Havia uma grande agilidade no discurso, no dizer das palavras e, ao mesmo tempo, uma gestão e consciência do poder das pausas, dos silêncios, dos olhares... impressionante. 
Quando o espetáculo termina, pergunto-me: será possível lutar contra esta nossa tendência para deixar passar tudo o que é nada, para deixar acumular? Na minha opinião, sim. Qualquer relação que tenhamos só perdura se comunicarmos com o outro, se formos completamente honestos com este. Neste sentido, devemos verbalizar tudo o que nos deixe magoados, inquietos ou incomodados. É assim que se resolvem as coisas, é assim que se evitam conflitos maiores e até o fim de relações. Adiar é estragar; conversar, pelo contrário, é cuidar. E, por isso, devemos questionarmo-nos todos os dias: queremos estragar ou cuidar?

BELONGING / E DI / PERTENENCIA / ZUGEHÖRIGKEIT / PERTENÇA / 絆

De Raquel André

No Teatro São Luiz


De 7 a 17 de novembro de 2024

Figura 48 Belonging / E di / Pertenencia / Zugehörigkeit / Pertença / 絆 - Teatro São Luiz


Belonging / E di / Pertenencia / Zugehörigkeit / Pertença / 絆  ou Pertença / Pertença / Pertença / Pertença / Pertença / Pertença? Este espetáculo, como o título sugere, aborda o sentimento de pertença: o que é que significa, para cada um de nós, pertencer? Independentemente da cultura, do espaço geográfico ou da língua falada, trata-se de um sentimento comum a todos os seres humanos. Um sentimento que pode ser explicado e exprimido de milhares de formas, mas que é universal e intemporal. Neste espetáculo, há uma tentativa de aproximação a este sentimento de pertença, uma tentativa muito próxima do real.

É um espetáculo entre o teatro documental e o cinema performativo. Neste, acompanhamos histórias de pessoas muito diferentes, oriundas de pontos do globo muito distintos; pessoas que nos falam sobre amor, sobre diversidade, sobre pertença e, no fundo, sobre a vida.

Uma das grandes questões que este espetáculo me levantou foi a seguinte: o que é que nos separa de uma pessoa que está do outro lado do mundo? Afinal, todos partilhamos a mesma linguagem: a linguagem humana e todos viemos do mesmo lugar: de África. Todos trazemos connosco uma pequena parte do ADN do primeiro homem e da primeira mulher que existiram. Na minha opinião, o que nos faz diferentes é a forma como expressamos e como vivemos a vida, como expressamos e como vivemos o sentimento de pertença. E o que torna este espetáculo tão interessante é precisamente o facto de mostrar todas estas diferenças, toda esta diversidade, sem qualquer tipo de julgamento. Foi, aliás, o espetáculo mais inclusivo a que já assisti. Havia uma grande preocupação com a comunidade, desde as legendas e da permanente linguagem gestual às folhas de sala escritas em Braille. E, para além de tornarem o espetáculo acessível a todos, estes também permitiam que todos participassem. Contudo, confesso que tudo isto me deixa um pouco inquieto. Haver ainda esta necessidade de criar espetáculos feitos por e para todos, de criar espetáculos que nos relembrem que somos todos pessoas e, como tal, temos todos direito  de assistir a uma peça de teatro; é assustador. Devia ser um dado adquirido.

Este espetáculo conduziu-me também a uma outra questão: serão as palavras a melhor forma de percebermos um sentimento?  E é possível perceber um sentimento? Eu penso que não, as palavras são somente uma aproximação ao que se sente e os sentimentos não se percebem racionalmente, sentem-se. E conseguimos ter acesso ao que o outro sente? Infelizmente ou felizmente, não. É impossível transmitirmos o que estamos a sentir, só se alguém vestisse a nossa pele, nos encarnasse é que saberia exatamente o que nós sentimos. Este espetáculo não é, portanto, como já referi, mais do que uma aproximação. É uma ilusão de compreensão do que é o sentimento de pertença, mas não será esta ilusão de compreensão também a base da nossa comunicação e, por isso, parte da nossa vida?

Houve, no entanto, um aspeto que não apreciei muito: a repetição dos vários planos com as pessoas entrevistadas. Inicialmente, era interessante, no entanto, ao aproximar-se do fim do espetáculo, estas repetições constantes tornavam-se "falsos finais". E, por isso, acabavam por ser um pouco frustrantes.

De uma forma geral, eu gostei bastante deste espetáculo pela sua humanidade, mas o que é que acontece para além disso? Afinal, trata-se de um espetáculo de teatro, segundo a programação do Teatro São Luiz, e se o teatro é humanidade, certamente também é vida, é o instante. Eu pessoalmente, senti falta desse tempo real, desse tempo muito distinto do da gravação. Neste espetáculo, só havia uma única pessoa em cena, um baterista que tocava, que emitia alguns sons e que cantou uma vez uma canção. Não houve uma única palavra dita em tempo real. Estava tudo gravado e documentado, até nos ofereciam pipocas. Parecia uma autêntica sessão de cinema com música ao vivo. Neste sentido, pergunto-me: até onde é que vai o teatro? Confesso que gostava de ter uma resposta para esta pergunta, mas infelizmente não a tenho. A única coisa que posso afirmar com alguma certeza é que existem cada vez mais espetáculos como este, espetáculos que procuram desafiar os limites do teatro, compreendê-los. Apesar disto, penso que esta opção estética, esta primazia pelo cinema, não se deve unicamente à vontade de perceber os limites do teatro; mas também à nova prioridade do teatro: o processo em detrimento do resultado final (o espetáculo). Por outras palavras, o próprio processo é o resultado. 

O cenário, a meu ver, era o adequado para o espetáculo. Isto é, não havia propriamente um cenário, só existia o palco, uma tela e uma bateria. O som tinha um papel protagonista, acompanhava todas as cenas, intensificando-as. A bateria, tocada ao vivo, provocava uma sensação muito forte no público, conduzindo-o numa viagem intercontinental e intergeracional. A luz, por sua vez, guiava o olhar do público, auxiliando o som.

Quando o espetáculo terminou, fui invadido por muitas perguntas que urgiam respostas: o que significa de facto pertencer? Pertencemos a pessoas, a lugares, a países? A nós próprios? Alguns dizem que é um sentimento que muda; outros dizem, orgulhosos e cheios de certeza, que só se sentem em casa com eles mesmos. Mas será esta a verdade? Eu penso que não há uma resposta estanque, ou seja, não tem de ser um sentimento que muda ao longo da vida, nem tem de ser um sentimento que não muda durante toda a vida. Posso apenas afirmar, com alguma certeza que, pertencer é um sentimento que varia de pessoa para pessoa. Contudo, não será essa também essa a beleza da espécie humana, a diferença?

Não vos arrancarei a língua // Momentos há em que as palavras nos abandonam

De Patrício Torres

No Teatro Aberto


De 14 de dezembro até 16 de fevereiro de 2025

Figura 47 Peças de teatro: o melhor desta arte para ver e apreciar em Lisboa


Falar ou não falar, eis a questão. Não vos arrancarei a língua // Momentos há em que as palavras nos abandonam é um espetáculo sobre a vida e as palavras. Podem as palavras preencher um vazio? Pode o silêncio preencher as palavras? Estas são algumas das questões levantadas neste espetáculo. "No princípio, (...) Deus criou o céu e a terra", depois "criou então o homem", ao qual deu livre-arbítrio e uma língua. Deu-lhe um aparelho vocal capaz de produzir sons e, com a ajuda da língua, articulá-los. Deu-lhe, portanto, uma liberdade infinita, contudo, com essa liberdade, também o aprisionou. Afinal, o que dizer quando se pode dizer qualquer coisa? O que dizer quando não se tem nada para dizer? O que dizer quando o contexto não nos permite? Não falar, dizer montes de palavras sem sentido e repetir palavras são gestos políticos, são protestos linguísticos que emergem neste espetáculo face a esta liberdade ilusória.

Neste espetáculo, Guilherme e Guilhermina são um casal de adolescentes, que se torna, num piscar de olhos, num casal de idosos. Perto e longe do "fim de partida" (peça de Samuel Beckett, 1957), estes entretêm-se a recordar momentos que poderão nunca ter existido.

Pessoalmente, não conhecia esta peça, no entanto, fiquei muito intrigado. Nesta, dá-se uma espécie de vácuo temporal, é como se o tempo parasse e cada palavra valesse por mil, é uma experiência semelhante às leituras das peças de Beckett. Faz-nos ainda perceber que é através das personagens menos quotidianas, isto é, menos aproximadas da nossa realidade, que conseguimos, de facto, perceber melhor o ser humano. Além disto, alude a um Deus diferente do que estamos habituados. Uma figura simultaneamente omnipotente e à distância de uma chamada. Uma figura com a qual podemos conversar e que nos pode salvar. Mas queremos ser salvos? E queremos ser salvos de quê, de quem e porquê?

Um dos aspetos mais curiosos deste espetáculo é, contudo, a vertente cinematográfica, desde o cenário, a caracterização à própria interpretação dos atores. Há uma imagética forte que remete para os filmes americanos antigos sobre pessoas de classe média-baixa e que confere vida a toda a peça, tornando-a mais psicológica e real. 

Eu gostei bastante do cenário, este estava repleto de objetos velhos: torradeira, televisão, pneus, um carro pronto para ir para a sucata... que contribuíam para a tal ambiência que referi. Também apreciei a utilização destes objetos durante a peça, era quase como se contracenassem com os atores. Esta questão estava diretamente relacionada com a parte sonora: cada objeto tinha um som associado, conferindo a este cenário decadente alguma vida; vida esta que contrastava com as próprias personagens. O som tinha, no entanto, um papel mais importante do que dar voz aos objetos, este criava uma atmosfera desconcertante, incompreensível e, ao mesmo tempo, arrepiante. Por último, é de realçar a caracterização: a sujidade nas faces dos atores acentuava todos os aspetos que mencionei. 

No que diz respeito à interpretação, penso que os atores fizeram um bom trabalho. Havia muitos contrastes:  mudanças súbitas de tom, a passagem repentina de voz falada para cantada e um jogo rítmico interessante com as palavras. Havia uma brincadeira com as palavras, com a língua. Para além disto, gostei do facto de os atores raramente olharem um para o outro. Desmistificava esta ideia de que precisamos de olhar ou de estar frente a frente com uma pessoa para termos um diálogo com ela. Uma ideia que está, infelizmente, muito normalizada no mundo  do teatro.

Quando o espetáculo terminou, saí da sala com algumas dúvidas. O que é que de facto aconteceu? Era o que perguntava repetidamente a mim próprio. Rapidamente percebi, em conversa com outros espectadores, que este espetáculo tem mil e uma interpretações possíveis. Sabemos que existiam duas personagens: o Guilherme e a Guilhermina, mas se tiveram um filho, se o queriam matar, se queriam ter outra filha, se rezavam todos os dias, se falavam com Deus ao telefone..., isso não sabemos. Não há grandes certezas, não há uma narrativa linear, há somente desejos e palavras, que, apesar de os termos ouvido e sentido, podemos ter simplesmente imaginado. E, para mim, é isto que torna o espetáculo tão interessante; esta possibilidade de ser muitos, de ser um acumular de possibilidades, de perspetivas, de ser uma obra aberta.

Urgência Climática

De André Amálio e Tereza Havlíčková 

No Teatro São Luiz


De 22 a 27 de outubro de 2024

Figura 46 URGÊNCIA CLIMÁTICA, dos Hotel Europa,... - São Luiz Teatro Municipal


Urgência Climática ou Desespero Climático? Neste espetáculo, somos alertados para a urgência da situação climática mundial. É urgente fazer alguma coisa, pois o planeta e as espécies que nele habitam estão a morrer e a desaparecer. No entanto, quando o tempo é escasso e a situação é urgente, as pessoas tendem a cair no desespero. E o que fazem as pessoas no desespero? Fazem o que pensam ser mais acertado, mas que, na realidade, pode acabar por ser o caminho mais complicado e desnecessário. Neste caso, sentam-se nas estradas, lançam tinta a quadros de pintores famosos... A meu ver, a paixão e a raiva são tantas que cegam os ativistas. Existem ações que estes desenvolvem que funcionam, que têm o impacto desejado, que são um gesto político. Contudo, assistimos mais frequentemente a atos desengonçados que fazem rir o país. Este espetáculo, na minha opinião, mais do que sensibilizar para a urgência climática e promover ações com impacto e significado, espelha as atitudes desesperadas dos ativistas do clima.

Neste espetáculo, cinco jovens ativistas alertam-nos para a importância da luta climática. Contam-nos os seus percursos pessoais, o seu interesse pelo clima, e os seus sonhos e angústias face a um futuro próximo.

Um aspeto que gostei bastante desta peça foi o facto de dar a ver os bastidores da vida de um jovem ativista em Portugal e o trabalho envolvido na organização de uma ação climática. É algo que não é muito abordado e foi, para mim, muito interessante perceber: as dificuldades, os objetivos, as regras, os truques e as conquistas dos ativistas.

Porém, houve alguns pontos que foram abordados neste espetáculo que me deixaram algo desconcertado. Em primeiro lugar, quer estes cinco jovens, quer os ativistas (de uma forma geral), assumem que o planeta deve ser a nossa primeira prioridade. E não sendo a nossa primeira prioridade, assumem que somos passivos e que não queremos saber do planeta. Não colocam, por isso, a possibilidade de nós contribuirmos em menor escala para a preservação do mesmo, ou de simplesmente não concordarmos com a forma deles fazerem as coisas. Em segundo lugar, lançam factos extremos e repletos de ódio, acompanhados por uma pitada de chantagem emocional. Factos que, apresentados nestas condições, condicionam o julgamento do público, colocando-o num lugar de culpa em vez de num lugar de proatividade. Em terceiro lugar, dirigem-se ao público sempre com um certo moralismo e uma superioridade arrogante. Falam desta forma com as pessoas que vão ao teatro, com as pessoas que querem a mudança, que pensam sobre a vida e sobre o mundo... Por último, esta peça insere-se na estética de teatro documental e a realidade é que são poucos os bons espetáculos de teatro documental. Este, tal como muitos outros, acaba por ser pobre de pensamento, ou seja, apresenta e doutrina mais do que coloca questões.

Apesar disto, apreciei a escolha etária do elenco, isto é, o facto de serem todos jovens. Tornou bastante claro uma questão muito relevante: são os jovens que vão enfrentar o agravar de todos estes problemas climáticos. E a verdade é que quem está a tomar, neste momento, as decisões importantes são pessoas mais velhas, pessoas que não irão assistir às consequências dos seus atos. E, neste mundo egoísta, este pequeno facto faz imensa diferença.

O cenário era algo despojado e futurista, o que de certa forma, fazia algum sentido. No que diz respeito ao som, não gostei muito. Este consistia essencialmente em instrumentos de percussão que coincidiam com o movimento, conferindo, simultaneamente, uma energia tribal e uma atmosfera de urgência e terror, que não foi muito credível para mim.  Além disto, penso que a projeção de vídeo não acrescentou muito ao espetáculo, apenas acentuou o seu carácter de teatro documental. Apreciei, contudo, os figurinos. Eram roupas que pareciam ser em segunda mão, roupas que denotavam, portanto, a preocupação destes jovens com o desperdício.

Relativamente à interpretação, senti que deixou muito a desejar. Eu conseguia seguir a linha dos acontecimentos do espetáculo, no entanto, não conseguia fazer muito mais do que isso. As pequenas sequências de movimento que os atores faziam eram interessantes, todavia, estes estavam, no geral, um pouco descoordenados. A nível da voz, havia algumas dificuldades de articulação e as palavras eram ditas de uma só rajada. Por outras palavras, eram gritadas, não lançavam, nem escondiam um tema maior, eram atiradas para o espaço e morriam em pleno voo. E tudo isto fazia com que o meu foco oscilasse entre ver o espetáculo e tentar ouvi-lo e percebê-lo.

Quando o espetáculo chegou ao fim, cheguei a uma conclusão: apesar de não concordar com a forma como a temática do clima é abordada, é muito importante falar deste tema no teatro. O teatro é um espaço livre e, ao mesmo tempo, um espaço político. Um espaço que dá voz aos problemas da sociedade. Um espaço para as pessoas pensarem e agirem sobre estes problemas. E o problema do clima é mais do que um problema de sociedade, é um problema mundial. É um problema que, se não resolvermos, resolverá todos os nossos problemas, porque não restará nada para resolver.

Class Enemy

De Nigel Williams

No Teatro São Luiz


De 12 a 27 de outubro de 2024


Figura 45 Class Enemy - Teatro São Luiz


class Enemy ou Class Enemy? O título deste espetáculo, que traduzido literalmente significa "inimigo da classe", já contém em si duas possíveis interpretações. À primeira vista, este termo pode referir-se a alunos rebeldes, a alunos que se opõem à turma, à escola, enquanto instituição. Restringindo, assim, este espetáculo ao tema da educação. Contudo, "inimigo da classe" pode também referir-se aos que lutam pelo fim das classes sociais, pelo fim das desigualdades sociais, enveredando por um caminho mais abrangente e político. Na minha opinião, é precisamente esta ambivalência que torna o espetáculo tão interessante: se, por um lado, denuncia o ensino, por outro, denuncia a sociedade. 

Nesta peça, conhecemos seis jovens muito diferentes: desde o que desenha para se entreter e não sabe falar de sexo; ao que se diverte com a jardinagem; ao que parte vidros; ao que gosta de cozinhar açorda com alho; ao líder do grupo. O que une estes rapazes não é apenas o bairro onde vivem, mas sim o sentimento de rejeição que sentem por parte da sociedade. Um dia, estes jovens, após expulsarem uma professora, decidem tomar conta de uma sala de aula, enquanto aguardam a chegada de um novo professor. E é durante esta espera indeterminada que os ânimos se começam a exaltar...

Eu gostei particularmente desta peça por abordar a questão da educação. Apesar de ter sido escrita em 1978 e num contexto muito específico inglês, a verdade é que não está assim tão longe da realidade atual portuguesa. Diz-se que a educação é para todos, mas, infelizmente, ainda é só para alguns. E como este tema não é noticiado, nem faz parte da realidade de muitos portugueses, é como se não existisse, mas existe. Há muitas escolas sem professores, principalmente em bairros onde as condições são muito precárias; em bairros onde os jovens precisavam de ter especialmente boas condições. Afinal a educação pode ser a sua única "salvação", a sua única forma de sair destes bairros e, consequentemente, ter uma vida melhor. No entanto, nos dias de hoje, muitos jovens não têm esta oportunidade, estão presos a um sistema de educação insuficiente que só perpetua a desigualdade, em vez de a combater. E se isto é a realidade, se eles continuam a ser diariamente rejeitados pela sociedade, o que é que também podemos esperar deles? Bons comportamentos? Obviamente que se vão sentir revoltados e incitados a ter comportamentos violentos, como partir vidros, por exemplo. Estão zangados porque sentem que a vida deles começa na rua e acabará na rua, não existe outra opção, não têm liberdade de escolha. A liberdade deles é meramente aparente. É assim que estes jovens veem a vida: como um anúncio de publicidade enganosa. E, por isso, dedicam-se à violência, não por serem animais selvagens, mas por estarem revoltados. Partir vidros é mais do que delinquência, é um gesto político. Eu aprecio particularmente esta peça por mostrar os dois lados da moeda: o lado dos alunos e o lado dos professores (do poder). Neste espetáculo, os professores são humilhados e maltratados pelos alunos, acabando por desistir deles. Esta questão faz-nos perceber que a luta pela equidade não é fácil e que não se trata de um problema local. Isto é, de um problema da escola x ou y, trata-se de um problema estrutural da nossa sociedade, de uma insuficiência no sistema da educação, que não pode ser resolvida do dia para a noite. Mas como podemos então resolvê-la? Eu confesso que não tenho uma resposta para esta pergunta, no entanto, acredito que se todos perdermos algum tempo a pensar sobre ela, podemos chegar a algum tipo de solução ou, pelo menos, a algum tipo de pista.

O único aspeto que não apreciei foi a adaptação deste texto para português. É sempre muito difícil adaptar peças  do realismo inglês, uma vez que o contexto inglês é muito distinto do português. Nesta peça, senti, em vários momentos, que a adaptação era um pouco insuficiente ou forçada.

É um espetáculo que nos relembra o porquê de virmos ao teatro, que nos preenche.

O cenário estava muito interessante, conseguiram dar vida e verticalidade a um espaço tão pequeno. Os figurinos estavam excelentes, seguiam a linha realista do cenário e do espetáculo em si. Também gostei do som, havia música ao vivo, e o uso de distorção intensificava as cenas. Relativamente à luz, gostei desta representar pessoas ou espaços que não conseguimos ver.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi muito boa. Os atores foram muito justos, davam-nos, verdadeiramente, a ver aquelas personagens. Para além disto, estes estavam divertidos e vivos em cena, havia uma grande potência cénica em cada gesto e em cada palavra. 

Quando o espetáculo chegou ao fim, senti-me, simultaneamente, satisfeito com o que tinha acabado de ver e preocupado com a precariedade que assola os jovens em Portugal. A coexistência destes sentimentos tão distintos fez-me questionar: o que é que vamos fazer ao teatro? Vamos encher o nosso ego faminto e intelectual, fomentar a nossa cultura? Vamos pensar sobre grandes questões, questões, talvez, insolucionáveis e chegar a conclusões ou a brilhantes devaneios, que nunca serão postos em prática? Neste espetáculo, senti-me particularmente assim: um autêntico "snob". "Snob" por ter consciência que, mal o espetáculo termine, vou prosseguir com a minha vida; posso pensar no assunto, mas a realidade é que as coisas vão continuar na mesma. Por isso, pergunto agora a mim mesmo e a todos os espectadores: vamos ao teatro para pensar ou para agir? Noutras palavras, queremos continuar a ter uma Class Enemy ou queremos tentar caminhar para uma "Classe Frenemy"?

A Noiva e o Boa Noite Cinderela

De Carolina Bianchi

Na Culturgest


De 15 a 16 de novembro de 2024

Figura 44 A Noiva e o Boa Noite Cinderela |


 A Noiva e o Boa Noite Cinderela ou A Santa e o Boa Noite Pippa Bacca? Mais do que um espetáculo sobre feminicídios e violações ao longo dos tempos, este é um espetáculo sobre o que aconteceu à performer Pippa Bacca. Uma performer que se vestiu de noiva e se deslocou por vários países a pedir boleias. Uma performer que acreditou na paz e no bem das pessoas e que acabou por ser violada e morta. Uma performer que teve o mesmo destino que todas as santas, o mesmo destino que todas as pessoas que tiveram fé na humanidade: o sono eterno, a morte. 

Para mim, esta peça está dividida em duas partes. Na primeira parte, a atriz e encenadora deste espetáculo fala sobre questões que a levaram a pensar esta peça e sobre questões que ainda a atormentam, questões para as quais não tem resposta. Passado algum tempo, esta revela que irá tomar em palco a droga do Boa Noite Cinderela. Uma droga utilizada para adormecer, maioritariamente, mulheres para as violar. Após, Carolina Bianchi tomar a droga, esta prossegue o seu discurso, até o Boa Noite Cinderela fazer o seu efeito. E assim termina a primeira parte. Na segunda parte do espetáculo, com a atriz a dormir, entra o restante elenco do espetáculo; e, através do uso do corpo, do som e da luz, conduzem o público ao inferno. 

A primeira parte do espetáculo fez-me lembrar uma conferência ou uma conversa depois do espetáculo. Não sou um grande fã de se falar do processo do espetáculo em palco, eu prefiro aceder ao pensamento do encenador, através do gesto cénico. No entanto, confesso que Carolina Bianchi convenceu-me: a sua energia e dinâmica prenderam-me a atenção. A segunda parte, por outro lado, desiludiu-me um pouco. Senti que foi uma grande alucinação, uma experiência infernal, mas foi mais "punk" do que esperava. Também não apreciei a permanência do texto neste segundo momento. Este tornou-se uma espécie de lembrete racional, tentava que nunca deixássemos de pensar, lançando tanto factos como poesia. E a verdade é que, a certa altura, já não conseguíamos processar. Até que ponto é que era então preciso este texto? A voz de Carolina Bianchi não necessita de mais palavras para ser ouvida, esta continua presente, através do seu corpo completamente adormecido à nossa frente. Para além disto, esta projeção contínua do texto aliada às várias ações a desenrolarem-se, simultaneamente, dificultava o seguimento do espetáculo. O meu olhar não conseguia acompanhar nada, porque se escolhesse dedicar a minha atenção a uma ação iria perder as outras ações e o texto. Desta forma, obrigava o espectador a um "Ping Pong" constante que era algo cansativo e frustrante. Apesar disto, havia uma grande potência corpórea e visual. Houve algumas imagens muito fortes que me provocaram choque, horror e até alguma náusea.

Trata-se de uma peça com temas muito importantes e impactantes, dos quais irei destacar dois. O primeiro tema que me interessou foi o facto do bem e da inocência serem um privilégio. Um privilégio a que as mulheres não têm direito. Se uma mulher tem comportamentos bons e inocentes esta corre perigo. E o que é um comportamento bom e inocente? É, por exemplo, dar um passeio à noite. Se uma mulher baixa a guarda, por um segundo que seja, é considerada ingénua, porque sabe que corre perigo. O bem e a inocência só são permitidos às mulheres em sonhos; na vida real, o bem e a inocência dão lugar ao Boa Noite Cinderela. E, na manhã seguinte, ao acordar, o que é que lhes resta? Cheiros, sabores, memórias enevoadas e marcas no corpo? O segundo tema que gostava de abordar é a questão do bem e do mal. Neste espetáculo, Carolina Bianchi pergunta-se: como é que podem acontecer coisas tão terríveis a alguém com intenções tão puras? Existirá o bem, existirá o amor? Esta concluiu que não existe; eu, pelo contrário, concluo que existe. Aliás, a meu ver, é precisamente pelo mal existir que o bem existe e vice versa. Se isto é um facto consolador? Claro que não, é horrível. Nenhuma mulher merece ser violada ou morrer, independentemente dos seus atos. Porém, a verdade é que estes atos acontecem e é por serem tão cruéis que as intenções puras das vítimas ganham tanto protagonismo. Quando a atriz afirma que não existe amor, que não há bem no mundo, esta está a dar um grande salto. Um salto precipitado e, na minha opinião, devido à ligação emocional que esta tem relativamente ao espetáculo e aos seus temas. Esta não só concebeu o espetáculo, como dá o seu corpo ao manifesto, numa homenagem a Pipa Bacca e a todas as mulheres. Neste sentido, estando tão perto destes assuntos, é impossível ser-se imparcial.

"O que é o teatro?" Esta é uma das perguntas levantadas neste espetáculo, contudo, esta não traz nada de novo. É, na verdade, exaustivo ouvir esta pergunta em espetáculos. É muito importante questionarmos esta arte, pensarmos sobre ela, pois só assim é que conseguimos evoluir. No entanto, nos últimos anos, parece que não se faz mais do que isto, do que fazer estas perguntas em palco com um certo desprezo, como se fossem filosofia avançada. Por que é que estamos cada vez mais a abandonar o teatro, a menosprezá-lo e a fugir para a performance? Tenho muito respeito pela arte da performance, mas há uma diferença entre fazer performance por livre e espontânea vontade e fazê-la por encontrar alguma insuficiência no teatro. Em vez de tentar perceber ou resolver, escolhe-se a solução mais fácil. A minha pergunta é apenas: porquê? 

Se tivesse de resumir tudo o que vi, diria que: uma verdade sentida não é uma conclusão lógica; que viver uma vida miserável é viver uma vida santa; que não é possível recuperar de uma violação; que a espécie humana não evoluiu; que a linha que separa a performance da realidade é muito ténue; e que as mulheres têm de andar com pezinhos de lã.

É um espetáculo forte e, de certa forma, violento. Coloca o público num lugar que vai para além do desconforto, num lugar entre o horror e a ação. 

Eu gostei bastante do cenário: o carro, os esqueletos espalhados pelo chão, o colchão, a terra... criavam uma atmosfera psicadélica, sombria. Fiquei somente com pena de não utilizarem a terra em cena, ou seja, desta ser meramente "decorativa". Também apreciei a utilização da luz, provocava um contraste entre os corpos e o próprio cenário. Não gostei, contudo, do uso de luzes estroboscópicas. Estas luzes estão muito moda agora e não consigo entender porquê. Penso que são usadas para "intensificar a cena", porém, a única coisa que intensificam é a sensibilidade ocular do espectador. No que diz respeito ao figurino, eu gostei da roupa branca de Carolina Bianchi e da roupa meia rasgada, de ganga e jovem dos outros atores. Todavia, não percebi o uso dos fatos de esqueletos, destoavam do restante figurino e eram demasiado figurativos.

A interpretação foi boa. Os atores tinham presença em palco, sobretudo a nível corporal. A voz tinha menos protagonismo e estava menos trabalhada, na minha opinião. As palavras eram proferidas e morriam no ato de fala, não projetavam imaginários. Senti, no entanto, que a voz ganhava corpo, quando estava próxima da biografia, nomeadamente na primeira parte.

No fim do espetáculo, ao ver Carolina Bianchi a acordar, tornou-se muito claro, para mim, que esta fazia emocionalmente parte deste espetáculo e de todos os seus temas. Noutras palavras, não havia uma distância de discernimento, como já referi. Mas não será esta distância uma fantasia? Alcançar esta frieza relativamente a atos tão atrozes parece-me quase impossível. O ser humano considera-se sempre capaz de tudo, até de racionalizar o irracional, caindo numa ilusão de conhecimento. Sem dar por isso, chega a uma série de conclusões mais emocionais do que lógicas. No entanto, estarão essas conclusões mais longe do conhecimento? Isto é, será o caminho para a compreensão mais sensível do que cerebral?


Amédée ou Como Desembaraçar-se

De Eugène Ionesco

No Teatro São Luiz


De 20 a 29 de setembro de 2024


Figura 43 Amédée ou Como Desembaraçar-se - Teatro São Luiz


Amédée ou Como Desembaraçar-se ou Amédée ou Como Embaraçar-se? Este espetáculo dá-nos a oportunidade de olhar para o teatro e para o mundo, em geral, de duas formas distintas. Se olharmos com atenção ao detalhe, às personagens, vemos duas pessoas a quererem desembaraçar-se, objetivamente, de um corpo e, metaforicamente, da culpa. De qualquer das formas, neste caso, sentimos a dor das mesmas e vemos esta tragédia a desenrolar-se. Contudo, se olharmos com alguma distância para a peça, para o seu todo, vemos duas pessoas embaraçadas, duas pessoas atrapalhadas e isso tem alguma graça. Em poucas palavras, vemos a comédia. Trata-se, portanto, de um espetáculo tragicómico que coloca em prática a famosa frase de Charlie Chaplin: "A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe". No entanto, seguindo este raciocínio, não posso deixar de me perguntar: o que é que vemos num plano médio?

Num apartamento aparentemente banal, conhecemos um casal aparentemente normal: Amédée e Madeleine. Estes vivem há quinze anos com um cadáver no quarto do lado, que cresce sem parar. Quando este monstro ameaça tomar conta de todo o apartamento, o casal reconhece não ter outra hipótese senão livrar-se dele. A pergunta que os atormenta é: como?

Eu gostei particularmente desta peça, pois convoca um universo absurdo e até surrealista, um universo característico das peças de Ionesco. O texto é marcado por uma linguagem quotidiana misturada com elementos "nonsense" e recheada por uma certa poesia, o que é interessante. Para além disto, apreciei a forma como o conceito de culpa é explorado, ou até materializado. Nesta peça, a culpa materializa-se nos cogumelos que nascem e crescem na sala, afinal o fungo nasce quando há condições propícias. Apesar dos esforços do casal, os cogumelos, não só não desaparecem, como se multiplicam. Mais do que um presságio, estes são, assim, um espelho da consciência, do estado de espírito destas duas pessoas. Amédée não consegue escrever a peça em que está a trabalhar e Madeleine tem muitas dificuldades em fazer o seu trabalho de telefonista. Os dois vivem imersos, sufocados pela culpa da morte daquela pessoa. E, sem saberem o que fazer à sua vida, passam o tempo a projetar a culpa no outro. Como é que lidamos com a culpa? Como é que não nos deixamos consumir pela culpa? É possível libertarmo-nos da culpa? Será a morte a solução? Ou será o perdão (externo e/ou interno) a solução? É possível perdoarmo-nos? Estas são algumas das perguntas que a peça levanta e que me fizeram refletir.

Um aspeto que não me fez muito sentido, relativamente ao espetáculo, foi o facto de existir um ator a fazer de carteiro e outro a fazer de polícia. Se não existe um ator a interpretar o trabalhador da mercearia, por que é que tem de existir um a interpretar o carteiro e outro a interpretar o polícia? Com todo o respeito por estes atores, eu penso que isto não é muito coerente. Aliás, na minha opinião, as falas destas personagens não eram essenciais para o entendimento da peça, bastava o casal olhar para um certo ponto e conversar com esse ponto para o público perceber. Noutras palavras, tendo em conta a simplicidade da encenação, bastava a convenção.

É um espetáculo muito pouco racional e que coloca o espectador num lugar engraçado. Num lugar, onde todas as reações parecem desajustadas: temos vontade de rir quando "não é para rir" e vice-versa. 

O cenário surpreendeu-me, este consistia em pouco mais do que duas secretárias, duas cadeiras, uma máquina de escrever e um telefone. No entanto, não era preciso mais do que isto. O espaço pode ter o tamanho que quisermos, cabe somente ao encenador e aos atores transformá-lo. E foi isto que aconteceu: com códigos claros, a sala de estar, de repente, estendia-se ao quarto do lado, às rua de Paris, à mercearia... A luz tinha um papel igualmente importante na expansão do espaço, na projeção destes imaginários. Também gostei do som, por ser tão incomodativo. Parecia o morto a crescer, a gritar. No fundo, o horror que as personagens sentiam, era percecionado pelo público através deste som agonizante.

A interpretação foi boa. Eu penso que os atores conseguiam jogar muito bem as duas dimensões da peça: o quotidiano e o absurdo. Este equilíbrio consciente criava um desconforto interessante no público. Além disto, é importante referir que a tensão entre eles, a frustração e o peso da culpa estavam bem trabalhados, quer a nível corporal, quer a nível vocal.
No final da peça, "spoilers" à parte, Amédée suicida-se e Madeleine grita: "Não acabaste de escrever a tua peça". Contudo, quando Madeleine diz estas palavras, esta quer, na realidade, dizer: "Não te despediste de mim". Diz, portanto, uma coisa quando quer dizer outra completamente diferente. Esta característica de Madeleine é, na verdade, uma característica intemporal e universal. Os seres humanos têm dificuldade em ser vulneráveis, em verbalizar os seus sentimentos e, por isso, dizem frequentemente coisas que querem dizer outras. É menos real, é menos doloroso. Como a dor não se materializa nas palavras, fica tudo cá dentro e cá dentro ainda conseguimos suportar, ou pelo menos, é assim que pensamos. Porém, cá dentro, na privação de ser verbalizada, esta cresce e cresce, dia após dia. E, se não a soltarmos, se não a exprimirmos, a dor vai continuar a crescer até os nossos pulmões ficarem entupidos de cogumelos.

O Contador da História

De António Torrado

No Teatro da Comuna


De 7 de novembro a 7 de dezembro de 2024

Figura 42 O Contador da História - Comuna Teatro de Pesquisa


O Contador da História ou O DeLorean? Ao entrar na sala do Teatro da Comuna, somos surpreendidos por um contador. Isto é, um móvel antigo cheio de gavetas, onde se guardavam documentos e valores. Contudo, rapidamente percebemos que este contador é mais do que uma peça de mobiliário, é um contador da história de Portugal, é um testemunho dos seus quase 900 anos de existência. Numa linguagem mais atual, é uma máquina do tempo, um autêntico DeLorean do Regresso ao Futuro. Neste espetáculo, regressamos a um passado histórico, a um passado que nos ajuda a perceber o presente e a pensar o futuro.

Com a ajuda de um narrador, de um corifeu e das múltiplas personagens que vão saindo das gavetas, revisitamos o passado português: o terramoto de 1755, o nascimento de João III, o desaparecimento do Rei Sebastião, o amor proibido de  D. Pedro I e Inês de Castro, a história do morte do conde Andeiro, o 25 de abril de 1974, entre outros.

O texto desta peça não é muito linear, uma vez que conjuga textos de vários autores portugueses como Camões, Gil Vicente, Fernão Lopes, Fernando Pessoa, José Augusto França, António Ferreira... Eu gostei particularmente desta miscelânea de linguagens e de tempos, no entanto, penso que o texto precisava de um certo tempo, de uma certa respiração.  Isto, aliado ao facto de não seguir uma ordem cronológica, tornava-o difícil de acompanhar. Neste sentido, apesar de ser um texto interessante por proporcionar uma perceção do tempo mais circular, deixou-me algo desnorteado.

É um espetáculo didático, um espetáculo sobretudo para os mais jovens. Para além disto, embora seja um espetáculo incompleto, no sentido em que é preciso muito mais do que uma hora para atravessar toda a história de Portugal; é um espetáculo que não deixa quase nada por contar. Tudo o que é enunciado não é somente contado, é ilustrado, não deixando, por isso, muito para a imaginação. É ainda um espetáculo que parece que parou no tempo, é algo antiquado. Porém, a verdade é que sentimos a paixão dos atores durante a peça e, sem essa paixão, o teatro não acontece.

O cenário deixou-me desconcertado: o contador, a tela, o banco de pedra, o tapete vermelho pareciam vir de universos estéticos diferentes. E, apesar disso poder gerar um diálogo interessante por evocarem épocas históricas diferentes, neste caso, gerou uma grande confusão visual. Relativamente à luz, eu gostei bastante. Esta acompanhava a abertura das gavetas do contador, conferindo uma fantasia adicional à peça. Além disto, também jogavam com as sombras, com as silhuetas dos atores, o que era interessante. Apreciei ainda a produção do som; eram produzidos vários sons em cena, a partir de pequenos instrumentos e de alguns objetos. Estes sons apareciam, muitas das vezes, sob a forma de canções características do momento histórico que estava a ser representado.

No que diz respeito à interpretação, senti que não transcendeu a dimensão escolar da peça. Ou seja, não ultrapassou a chamada: "representação para escolas". Antes de continuar, quero apenas relembrar que eu sou um mero espectador e, por isso, a minha opinião resume-se a isso, a uma opinião. Tenho um grande respeito por todos os atores desta peça, são muito bons atores. No entanto, neste espetáculo, a interpretação ficou um pouco aquém das minhas expectativas e do trabalho que os tenho visto a fazer. De uma forma geral, houve alguns momentos que não consegui entender bem o texto, ouvia o movimento das palavras, mas não conseguia aceder ao seu significado, ao seu imaginário. Contudo, gostei das dinâmicas de coro que desenvolveram e do facto de utilizarem certos objetos, ou peças de vestuário para simbolizar as personagens, facilitava a compreensão.

Perto do fim do espetáculo é aberta uma gaveta "meia fechada", a gaveta do 25 de abril. "Por que é que está "meia fechada"?", foi o que me perguntei. Será porque, cinquenta anos depois, ainda sentimos a revolução? Ou é precisamente por que estamos progressivamente a esquecermo-nos desta gaveta? Afinal, uma gaveta meia fechada, não é mais do que uma gaveta que nos esquecemos de fechar. Uma gaveta que caiu no esquecimento. Concluí que talvez seja pelos dois motivos. Vivemos num país dividido, num país onde algumas pessoas começam a esquecer esta data e onde outras continuam a celebrá-la como se fosse a primeira vez. Uma coisa é certa, o teatro não esquece esta revolução, imortaliza-a. "Não quero ser lobo, não lhe vista a pele/ Um pássaro a voar, mais vale/ Esta é a madrugada que eu esperava/ Sim, esta é a madrugada que eu esperava".

Búfalos

De Pau Miró

No Centro Cultural de Belém



De 18 a 29 de setembro de 2024

Figura 41 “Búfalos” de Pau Miró | Artistas Unidos - Viral Agenda


Búfalos ou formigas? Neste espetáculo, fala-se de girafas, de leões, mas sobretudo de búfalos. Mas o que é que sabemos sobre estes animais? Os búfalos são animais simultaneamente fortes e fracos. São animais que se sabem defender, mas que, ao mesmo tempo, têm predadores, nomeadamente os leões. São também animais que agem em grupo e dentro da manada todos se protegem: se ofendem um, ofendem todos. Mas porquê chamar búfalos, quando se pode chamar formigas? As formigas são os animais mais fortes e mais fracos do mundo. Estas são capazes de carregar cerca de cinquenta vezes o seu peso corporal. Contudo, são muito pequenas e delicadas comparativamente aos outros animais. Para além disto, as formigas são animais frequentemente esquecidos, animais que procuram o seu lugar no mundo por entre pisadelas. São um espelho dos jovens desta peça e da geração mais jovem, de uma forma geral. Uma geração que tenta sobreviver num mundo dividido e repleto de falhas.
Esta peça faz parte da trilogia de fábulas de Pau Miró: Girafas/Leões/Búfalos. Num bairro complicado, cinco irmãos vivem e trabalham numa lavandaria. Estes crescem traumatizados pela perda do irmão, que teria sido "levado" por um leão e, mais tarde, pelo desaparecimento da mãe, também à custa dos leões. É a dor causada por estas perdas e o ódio que sentem pelos leões que os mantém unidos. Juntos, estes lutam por um mundo e um futuro que desconhecem.

Um dos temas que me suscitou interesse nesta peça foi a questão da violência. Como crescer no meio de tanta violência? Como crescer no meio do medo, sem referências paternas/maternas e no meio de tantas perdas? A verdade é que a violência gera violência. Sem uma boa educação e segurança, é difícil crescer, é difícil sentir que se pode expressar os sentimentos. É mais fácil reprimi-los. No entanto, os sentimentos, como indica a palavra, precisam de ser sentidos. Quando os reprimimos, desenvolvemos comportamentos agressivos: acabamos por bater uns nos outros, por nos entregarmos à bebida, à faculdade, a um marido, a uma lavandaria falida ou à falta de apetite. Depositamos toda a nossa esperança em coisas exteriores a nós, na esperança de encontrarmos conforto ou até salvação.

Outro aspeto que apreciei foi o facto desta peça retratar a realidade de muitas famílias. Famílias que vivem em bairros pobres; famílias que vivem do e no trabalho; famílias cujos filhos faltam à escola para trabalhar e que, mesmo assim, veem o seu negócio a falir. Trata-se de uma peça sobre pessoas rejeitadas pela sociedade, marginalizadas. Pessoas que são como búfalos, isto é, que têm tanta força e poder, como são vulneráveis. Pessoas que querem sobreviver e que fazem tudo por isso, mas que, muitas das vezes, acabam por ser engolidas pela sociedade e por caírem no esquecimento.

É um espetáculo repleto de imagens, de movimento e de vida.

O cenário consistia essencialmente em várias máquinas de lavar empilhadas e móveis. Eu gostei bastante, uma vez que esta mobilidade conferia uma grande liberdade e plasticidade ao espaço. Relativamente ao som, à luz e aos figurinos, confesso que nada me chamou a atenção, quer pelo positivo, quer pelo negativo.

No que diz respeito aos atores, penso que fizeram um bom trabalho. Havia uma potência nos corpos, uma vibração que os espectadores conseguiam sentir. Para além disto, estes conseguiam dar a ver as histórias que contavam, era quase como se estivessem a acontecer à nossa frente. Era também muito interessante ver a forma como as personagens cresciam, ao longo da peça, como lentamente deixavam de ser crianças e se tornavam jovens adultos.

Quando a peça termina, ficamos um pouco desamparados. Ficamos com uma sensação amarga, com a sensação de que não vale a pena ter esperança. Afinal, todas as personagens acabam, de certa forma, sozinhas e num grande sofrimento. Um sofrimento que é fruto de uma tentativa de sobrevivência neste mundo cruel, onde vivemos atualmente. Noutras palavras, esta peça mostra-nos que a geração mais jovem não podia estar mais perdida. A questão que surge não é então: como ajudar esta geração a encontrar o norte?; mas sim: haverá um norte?

Ágora

De Sandra José

Na Boutique da Cultura


De 20 de outubro a 22 de dezembro de 2024

Figura 40 Bilhetes Ágora - Boutique da Cultura (bol.pt)


Ágora ou Arogá? Ágora é um mundo cheio de imaginação, onde a fantasia, as cores, os desejos e a magia se reúnem. Neste mundo sem limites linguísticos, Ágora poderia ser Arogá ou até mesmo Ogará, porque a imaginação não tem fim. A imaginação não olha à razão ou ao sentido, simplesmente é. Neste espetáculo, somos convidados a imaginar, a sermos simplesmente, a atirar aviões de papel ou até a virar palavras do avesso.

Era uma vez um Principezinho que vivia dentro de uma bolha mágica. Um dia, este pequeno príncipe sai da sua bolha e aventura-se sozinho ou, talvez, acompanhado num mundo onde a realidade e o sonho se confundem. Num mundo cheio de rosas falantes e raposas matreiras, onde muitas histórias são contadas. Histórias infinitas que vivem do presente.

O texto desta peça parte do imaginário d´O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry, desdobrando-se noutros mundos. Contém algumas das personagens desta história, como a rosa, a raposa, o piloto e o próprio Principezinho. E, tal como o livro, trata-se de um texto intemporal que se dirige a todos nós, independentemente da idade. O que este texto tem de mais interessante é precisamente isto: as diferentes interpretações que pode espoletar consoante a nossa idade. Há frases que eu não consigo entender, talvez um dia as compreenderei ou talvez já as tenha compreendido. Para além disto, este é um texto que pensa a vida a partir da perspetiva das crianças, uma perspetiva inocente. Uma perspetiva que faz falta ao mundo atual. 

Se tivesse de resumir tudo o que vi, diria que: quanto mais perto o umbigo estiver próximo da boca, melhor; podemos sempre dar a mão ao outro; o coração é um monte enorme; viver o instante é tão importante como respirar; "quem és tu?" é uma frase que faz as crianças rir e os adultos pensar; é na espera pelo pôr do sol que acontecem coisas maravilhosas; as crianças tornam-se adultas, mas os adultos nunca deixam de ser crianças; as pegadas que deixamos na areia vão ser sempre um mistério; e a imaginação é sempre uma opção.

É um espetáculo leve, divertido e poético! Um espetáculo que foge ao comercial, que se dirige aos nossos sentidos, mais do que à nossa razão. Enquanto num espetáculo da Cinderela, por exemplo, as crianças compreendem o enredo e riem-se da história; neste espetáculo, elas sentem e vivem o mundo que quiserem. Habitam este tempo infinito e, simultaneamente, fugaz, o tempo da imaginação.

Relativamente ao cenário, eu gostei bastante. O espaço era pequeno, mas estava muito bem aproveitado. Através do uso da projeção, do jogo de sombras, da utilização de panos... conseguiam criar múltiplos espaços. A luz e as músicas lindíssimas de Rodrigo Leão também contribuíam para potenciar o espaço e a própria narrativa. Envolviam-nos e projetavam-nos para a fantasia.

No que diz respeito aos atores, penso que fizeram um bom trabalho. Sendo teatro para crianças, a representação tem de ser infantil. Afinal, as crianças percebem melhor tudo o que é dito na "língua delas". Não é o que é dito, mas sim a forma como é dito. Encontrar esta forma de comunicação é, portanto, o grande desafio dos atores neste tipo de peças, desafio este que os intérpretes deste espetáculo conseguiram superar.  Para além disto, gostei da interação dos atores com o público, pois criava cumplicidade com o espectador, principalmente com os mais novos. Também é importante salientar o nível de concentração dos atores. Com crianças a repetirem as falas, a rirem-se, a fazerem-lhes perguntas... estes eram capazes de integrar tudo isso no espetáculo.

Ao sair da Boutique da Cultura, continuei a pensar na última frase da peça: "para vermos o pôr do sol, é só fechar os olhos". A verdade é que não precisamos de um avião para irmos a lugares extraordinários, basta fecharmos os olhos: a nossa imaginação é capaz de nos levar a sítios inacreditáveis. As crianças não precisam de fechar os olhos, elas vivem neste mundo do sonho. Quando crescemos, abandonamos a imaginação e mergulhamos na realidade.  Neste sentido, antes fechar os olhos era um acessório, agora é uma escolha e uma necessidade.

Na Solidão dos Campos de Algodão

De Bernard-Marie Koltès

No Teatro Ibérico


De 18 a 29 de setembro de 2024

Figura 39 Teatro GRIOT estreia peça “Na Solidão dos Campos de Algodão” em Lisboa – Observador


Na Solidão dos Campos de Algodão ou Na Escuridão dos Campos de Algodão? O que é que se passa nestes campos de algodão quando a noite cai? Na escuridão da noite, o ser humano desaparece para dar lugar ao animal, ao animal que caça, que luta, que receia, e que anseia por poder. O que o ser humano tem de mais obscuro vem ao de cima nestes campos solitários e frios. Mais do que solidão, assistimos, assim, a uma escuridão tal que não é possível distinguir o ser humano do animal. Vemos a humanidade a regressar às suas raízes. A pergunta que surge é então: porquê?

Nesta peça, assistimos à relação entre duas pessoas: um comprador e um vendedor. Numa rua deserta, durante a noite, a relação entre estas duas figuras vai-se tornando cada vez mais animalesca. A luta entre o dominante e o dominado torna-se visível e quase palpável. 

Trata-se de um texto complexo e interessante, contudo, penso que não o consegui entender muito bem. Foi uma experiência um pouco angustiante, enquanto espectador. Sentia que não estava a fazer bem o meu "papel", que não estava a ser capaz de ouvir o que me tinham para dizer. No entanto, agora, com alguma distância do espetáculo, penso que esse também não é o papel espectador. Este não deve ter de se esforçar para entender, a sua única tarefa é deixar-se levar pela escuta.  E quando isto não acontece, não vale a pena frustramo-nos, porque a verdade é que não conseguimos controlar nem prever o espetáculo.

Relativamente ao cenário, a minha opinião divide-se. Por um lado, gostei de ver as paredes verdadeiras do edifício do teatro. Por outro lado, penso que estas destoavam do resto do cenário, havia uma grande confusão, a nível visual. Para além disto, penso que o cenário não acrescentava muito à peça e que atrapalhava os atores, a cena e a compreensão da mesma. Relativamente ao figurino, confesso que não percebi bem o seu papel. Inicialmente, pensei que nos ajudava a identificar as personagens. Porém, a certa altura, isso deixou de fazer sentido e eu deixei de perceber. 

No que diz respeito à interpretação, fiquei um pouco desconcertado. Existiam dinâmicas interessantes de uníssono e de sobreposição de texto, mas não sei se estas eram as mais adequadas. A meu ver, este texto pedia algo mais simples, para conseguirmos perceber as ideias. Contudo, optando por estas dinâmicas, era fulcral garantir que o artifício não prejudicava a compreensão. Infelizmente, não foi o caso: neste espetáculo a forma ofuscava o conteúdo. Além disto, houve partes do texto que não consegui ouvir e outras que não consegui perceber, porque os atores davam ênfase a palavras que não faziam sentido. O corpo estava bem trabalhado, mas, tal como a fala, penso que exigia alguma simplicidade. Por vezes, era demasiado, distraía o espectador da cena.

Quando o espetáculo termina, tento perceber o porquê. O porquê de nos tornarmos animais do dia para a noite. O que é que nos faz querer voltar ao animal? Eu penso que isto acontece, porque é mais fácil voltarmos àquilo que conhecemos. O difícil é sermos civilizados, é rendermo-nos à sociedade e às suas regras. As regras são nossas, fomos nós que as criámos, mas não nos são naturais. Por isso, à mínima oportunidade desistimos delas, numa hora mais solitária, o esforço, a vontade de ser diferente esvai-se e somos dominados pelo impulso. Principalmente se estas regras, se a própria sociedade nos exclui, se somos marginalizados. Olhando para o futuro, qual é o caminho a seguir: a domesticação ou a selva?

Monóculo, Retrato de S. Von Harden

De Stéphane Ghislain Roussel

No Teatro Aberto


De 11 de setembro a 3 de novembro de 2024

Figura 38 MONÓCULO de Stéphane Ghislain Roussel - TEATRO ABERTO


Monóculo ou microscópio? Antes de continuar, penso que é importante esclarecer estes dois conceitos: um monóculo é um tipo de lente utilizada para corrigir a visão de um olho; um microscópio é um instrumento que torna visível objetos que são invisíveis a olho nu. Enquanto o monóculo apenas iguala a realidade que já vemos com um dos nossos olhos, o microscópio dá-nos a ver aquilo que escapa à visão humana. Na minha opinião, o teatro acaba por ser um microscópio da vida. É uma arte que permite mostrar ao espectador o que este de outra forma não veria. No caso deste espetáculo, dá-nos a ver a vida de Sylvia von Harden, uma jovem jornalista dos anos vinte. Uma figura que, sem esta peça, só poderíamos conhecer através do Retrato da Jornalista Sylvia von Harden, uma pintura de Otto Dix. E há uma grande diferença entre olharmos para um retrato e vermos a personagem viva à nossa frente, a falar e a mexer-se. O teatro dá-nos a oportunidade de ver o ser humano num plano mais aproximado. Noutras palavras, dá-nos a ver o que está no quadro, mas que transcende a nossa visão e compreensão. 

Esta peça passa-se nos loucos anos 20 no ateliê de Otto Dix, um pintor expressionista. Este retrata Sylvia von Harden, uma mulher emancipada, um ícone desta época histórica. Durante as várias sessões de trabalho, esta expõe o mundo artístico e a sociedade da altura, sem deixar de manifestar as suas convicções arrojadas e a sua sede de liberdade, em todos os sentidos do termo.   

O texto é muito interessante, pois não contempla as respostas do pintor. Ao mesmo tempo, também não se trata de um monólogo, uma vez que o diálogo está tão intrínseco que o espectador quase consegue ouvir as respostas. Para além disto, é algo desconexo. É um texto que deixa espaço para a imaginação do público, contendo, a meu ver, a dose ideal de confusão. 

É ainda uma peça que aborda a questão do género. Sylvia von Harden é uma mulher estranha para o seu tempo. Apresenta-se de cabelo curto, monóculo, um vestido que não a favorece e de cigarro na mão. É, portanto, uma mulher que foge às convenções da época, no que diz respeito ao género feminino. Sente-se fisicamente e espiritualmente presa à roupa que veste, ao género que lhe é impingido.  Neste espetáculo, esta ânsia por uma fluidez de género é levada ainda mais longe, ao escolherem um ator masculino para fazer este papel. Ver esta mulher num corpo masculino reforça a ideia de que o género é aquilo que queremos que seja, é aquilo que a sociedade define. Resume-se a um conjunto de características a que é dado um nome e que dita a forma como nos relacionamos uns com os outros.  Neste sentido, no fim do dia, que importância têm estas designações, por que é que lhes atribuímos tanto peso? Afinal, não somos todos pessoas?

A conceção do espetáculo era, em si, fantástica. O ambiente "vintage" e expressionista que é trazido para palco era muito curioso. No entanto, senti a falta de qualquer coisa. E por mais que tente perceber o quê e porquê, não chego a nenhuma conclusão. Foi a primeira vez que saí do teatro sem saber o que tinha acontecido. Pergunto-me se foi o texto, se foi o cenário, se foi o ator, se foi a encenação... Porém, para mim, todos esses pontos estavam individualmente bem trabalhados. Foi o conjunto desses elementos que resultou num vazio inexplicável. Apesar disto, acredito que este "não saber" também faz parte da experiência do espectador e, por isso, não devemos ignorá-lo ou escondê-lo, pelo contrário, devemos dar-lhe voz.

Eu gostei particularmente do cenário, uma vez que remetia para o estúdio de um pintor dos anos vinte. Havia um gira-discos, um quadro da sua autoria pendurado, uma mesa com um "cocktail" que se enchia sozinho e os cigarros acendiam-se "como antigamente"... Além disto, tinha janelas baças, por onde conseguíamos ver as sombras das árvores, conferindo um tom melancólico ao espaço.  Apreciei também bastante a caracterização. A maquilhagem juntamente com o figurino criavam uma figura marcante, uma figura que parecia ter saído diretamente do quadro. Relativamente à projeção de imagens ou o jogo de sombras criado, penso que só fazia sentido no momento em que a personagem entra em delírio. De uma forma geral, era demasiado ilustrativo e redundante, acabando por nos distrair do ator. 

No que diz respeito à interpretação, penso que foi muito boa. O ator passava a maior parte do espetáculo numa posição fixa, a posar para o pintor. E isto, para além de ser impressionante, permitia-nos perceber as possíveis transformações que podem surgir dessa imobilidade. A voz, por sua vez, ao emergir deste corpo peculiar, não se esgotava numa imitação de uma voz feminina. Era uma voz que vinha de um sítio de construção e não de um sítio de fingimento.

Quando o espetáculo termina, ficamos com a sensação de que conhecemos "uma mulher fora do seu tempo". Contudo, a este pensamento segue-se imediatamente uma pergunta: mas será uma mulher do nosso tempo? Infelizmente, não consigo dizer com certeza se Sylvia von Harden pertence ao nosso tempo. É uma figura estranha para o seu tempo, uma figura do futuro, mas será este futuro 2024? Terá a sociedade atual uma mente assim tão aberta? Na minha opinião, não, ainda há um longo caminho por percorrer.  O género continua a estar muito preso a uma ideia binária e a ter uma série de características associadas. O cabelo curto ainda é chamado de "cabelo à rapaz"; cigarro é agora unissexo, mas os pelos do corpo, antes unissexo, são atualmente considerados masculinos. Quanto ao monóculo, este acabou por simplesmente cair em desuso. Em suma, os direitos das mulheres e a questão do género evoluíram bastante nestes cem anos, mas não o suficiente. Qual é então o próximo passo? Eu penso que devemos deixar de nos preocupar com a nossa imagem, com o que a sociedade pensa ou deixa de pensar, porque no dia em que largamos essa preocupação, todos estes rótulos vão deixar de ter importância. Em poucas palavras, é deixarmo-nos ser pintados. 

Telhados de Vidro

De David Hare

No Teatro da Trindade



De 12 setembro a 17 de novembro de 2024

Figura 37 Telhados de Vidro | Teatro da Trindade INATEL


Por quanto tempo conseguimos adiar "a conversa"? Todos nós já tivemos problemas com amigos, familiares ou namorados(as). Contudo, por gostarmos tanto dessa pessoa e/ou por alguma cobardia, adiamos indefinidamente a conversa que temos de ter com ela; esse momento onde ou resolvemos tudo ou percebemos que somos completamente incompatíveis com essa pessoa e que, por esse motivo, devemos seguir caminhos diferentes. Perante esta situação, existem, por sua vez, duas possibilidades: na primeira, por muito que uma pessoa fuja da conversa, a conversa acaba por ir ter com ela; na segunda, a pessoa continua em fuga até ao resto da sua vida e, por inação, a relação em questão destrói-se. Neste espetáculo, Clara encontra-se claramente em fuga, mas, um dia, quando Tomás bate à sua porta, vê-se entre a espada e a parede. As palavras vão-se entrelaçando e, inevitavelmente, a conversa acontece. É inevitável porque, dadas as circunstâncias, a verdade torna-se urgente. Os dois personagens desejam resolver os problemas que ficaram por esclarecer. Naquele apartamento pequeno e frio em Chelas, vemos então a escuridão e a luz que há dentro de cada um, vemos duas pessoas tão transparentes como telhados de vidro. 

Nesta peça, Clara, uma jovem professora, é surpreendida durante a noite, por Tomás, um empresário rico, cuja mulher faleceu recentemente. E neste reencontro, os dois tentam perceber o porquê da sua relação ter terminado.

Trata-se de uma peça que segue o realismo britânico, uma linguagem estética que, apesar de reconhecer o seu valor, não aprecio muito. Tudo se passa, habitualmente, na mesma divisão e os problemas já velhos emergem de conversas aparentemente banais. Sentimos a tensão desde o início e sabemos que não irá acabar bem, que tudo se passará como na vida real, ou como os autores destas peças acreditam que é a vida real. Resumindo, são peças que falam sobre a vida, sobre relações e sobre o próprio ser humano, mas é sempre de um ponto de vista muito deprimente; ou melhor, de um ponto de vista real. Eu gosto de ir ao teatro e de ser confrontado com a vida, mas não com uma visão tão literal dela. Contudo, confesso que gosto bastante do carácter político e social presente nestes textos, nomeadamente em Telhados de Vidro, uma vez que dá visibilidade a questões sociais importantes e que são, diariamente, menosprezadas. Para além disto, apesar de simpatizar com a visão política de Clara, este é um texto que dá voz a ambas as personagens. Se, por um lado, temos uma mulher de convicções socialistas e com uma argumentação lógica e segura, por outro, temos um homem de convicções capitalistas com sentido de humor afiado e perspicaz.

Outro aspeto que despertou a minha atenção neste espetáculo é o facto de contemplar um segundo guião. Isto é, durante a peça, são projetadas algumas legendas que são, frequentemente, contrárias ao que se está passar em cena. Estas representam a vontade da personagem da Clara: o guião que esta tinha traçado para a sua vida, mas que, por diversas razões, não se concretiza. É uma ideia interessante, no entanto, não sei se produz o efeito desejado. Afinal, várias vezes, dei por mim a pensar no significado das legendas, em vez de estar a assistir à peça. Além disto, acredito que estas não são necessárias, uma vez que se encontra tudo subentendido na interpretação dos atores. Todavia, optando por este mecanismo, por que não legendar também as intenções da personagem do Tomás ou até do Eduardo (filho de Tomás)?

Se tivesse de resumir o que vi, diria que o amor tem várias formas; que amar não implica ser amado; que a culpa é um sentimento que nos destrói lentamente; que nós somos o nosso maior juiz; que o dinheiro pode trazer conforto, mas não traz necessariamente felicidade; que os opostos se atraem tão depressa quanto se afastam; que o desejo raramente está alinhado com o dever; que há certos valores dos quais não podemos prescindir; que uma relação à base da mentira não é uma relação, é uma co-dependência; e que viver é reescrever diariamente o nosso guião. 

Este espetáculo é uma autêntica montanha-russa de emoções. É uma oportunidade de viver, por uns minutos, uma história que não é nossa, mas que poderia ser.

O cenário, os figurinos e a própria luz obedecem à estética do espetáculo, ou seja, remetem para o nosso quotidiano, para a atualidade. Porém, o cenário consegue sobressair dentro desta coerência que o espetáculo exige. O recurso às claraboias, para além de fazer referência ao título, torna o espaço mais amplo e significativo, mais propenso à reflexão. Cria um contraste engraçado entre a pequenez do apartamento e do ser humano e a imensidão do céu e do próprio universo. Relativamente ao som, havia um pianista que acompanhava o espetáculo. Pessoalmente, gosto sempre de ouvir música ao vivo, pois envolve uma sensibilidade que um instrumental não é capaz de transmitir. Contudo, penso que como, no geral, já estava tudo tão acentuado, através da interpretação e das legendas, a música tornava-se algo redundante.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi muito boa. Os atores tinham uma cumplicidade entre eles que é difícil de pôr em palavras, sentia-se. Apreciei também as pequenas ações que estes desenvolveram para as suas personagens, ações comuns, mas repletas de significado. Para além disto, considero que os atores foram muito justos na sua interpretação. Estes não nos apresentavam qualquer tipo de caricatura nem qualquer tipo de juízo de valor sobre as personagens que representavam, davam-nos simplesmente a ver aquelas pessoas, com as suas qualidades e os seus defeitos; pessoas que podiam perfeitamente existir, cabendo ao público julgá-las ou não.

A cortina fecha e saímos do teatro com uma sensação de amargura. Uma sensação que assola qualquer espectador, quando não vê um final feliz. Mas, se pensarmos bem, faria algum sentido estas personagens terem um final feliz? Na minha opinião, não, porque estas têm valores incompatíveis. E os valores, infelizmente, são impossíveis de  desassociar da pessoa que os defende. Aliás, estes fazem parte dela, são o que a orienta, o que a faz ser quem é. E, por isso, se os ignorarmos, se os reprimirmos estamos a ignorar, a reprimir a pessoa de quem gostamos. O que fazer então? A personagem da Clara dá-nos uma pista: o primeiro passo é reconhecer e o segundo passo é aceitar, deixarmos que a pessoa siga o seu caminho. E quanto aos finais felizes, para quê perder tempo com eles, quando podemos ter uma vida feliz?

O Retrato

De Miguel Graça

No CAL e no Teatro Mirita Casimiro


De 5 a 15 de setembro e de 17 a 18 de setembro de 2024, respetivamente

Figura 36 O Retrato | (agendalx.pt)


Quid valer vita tua? (Qual é o valor da sua vida?) Esta é a primeira pergunta que nos é feita neste espetáculo ou, pelo menos, foi assim que eu a entendi. E com esta questão, somos conduzidos a mil e uma reflexões: será que a minha vida tem um preço? Que valor é que eu quero que a minha vida tenha? O que é que eu faço com a minha vida? Todas estas questões são complexas e cabe a cada um responder ou pelo menos pensar sobre elas. Contudo, mais do que olharmos para nós mesmos, este espetáculo propõe-nos olhar para a sociedade, em geral. Quanto é que vale a vida humana? Podemos dizer que a vida humana não tem preço, que não se resume a uma casa grande, a um carro caro ou a mil ducados. Podemos dizer que tem um valor único e inigualável. No entanto, no fim do dia, o que é que vemos? Vemos a sociedade a vender a sua alma ao diabo, vemos jovens a sacrificarem os seus sonhos, a sua alma, por dinheiro e por fama. E porquê? Por cinco minutos de glória, de sucesso, de orgulho e de superioridade? Por que é que nos deixamos corromper? Eu penso que o ser humano é um ser ganancioso. É um ser com uma ambição desmedida, sendo, por isso, facilmente seduzido por dinheiro e por reconhecimento. Contudo, a verdade é que quer a riqueza, quer a fama, têm o seu prazo de validade; não só por serem efémeras, mas também porque o estado de aparente felicidade que produzem é breve. Por outras palavras, a viagem é curta e o preço é caro. Infelizmente, atualmente, há muitas pessoas dispostas a pagá-lo. A pergunta que nos devemos fazer é então: quero ser uma dessas pessoas?

O texto desta peça é inspirado no conto homónimo de Nikolai Gógol (1941) sobre a vida do pintor Tchartkov. Um pintor que começou por ser um estudante cheio de sonhos e sem dinheiro, e que se tornou num pintor rico e bem-sucedido, atormentado pela solidão e pelo arrependimento.

Uma das grandes temáticas desta peça é a arte, mais concretamente, a vida dos artistas. Mostra-nos a dura realidade que é seguir a carreira artística: é preciso ter dinheiro para comer, para pagar a renda e o que dá esse dinheiro não é, muitas das vezes, o sonho de um artista, mas sim o que está na moda. Nesse sentido, para ganharem dinheiro, muitos artistas veem-se aliciados a fazer o que os outros querem que eles façam, mesmo que isso implique pintar quadros irrealistas de miúdas cheias de borbulhas do século dezanove. E a partir daí é muito fácil perderem-se, o difícil é manterem-se fiéis a si mesmos e aos seus desejos. De repente, sem darem por isso, passaram-se quarenta anos e só lhes resta rasgar raivosamente quadros de artistas que invejam, de artistas que se concentraram em fazer a sua arte. Afinal, quando morremos já não há nada que possamos fazer, para além de contemplarmos as nossas memórias. E quando essas memórias não são as que desejávamos, somos invadidos por um sentimento muito cruel, pelo arrependimento. Passamos os últimos minutos a pensar no que poderia ter acontecido, no que poderíamos ter feito e não fizemos. Em poucas palavras, esta peça oferece-nos um retrato daquilo que pode ser a vida de um artista: solitária, vazia e triste.

Foi definitivamente um dos melhores espetáculos que já vi. Este transporta-nos para uma época e para uma cidade completamente diferente da nossa, através de um ato tão básico como o de contar uma história.

Relativamente ao cenário, penso que era muito adequado à peça. Este era bastante simples, mas era essa simplicidade que permitia que o espaço se metamorfoseasse, adquirindo outros significados durante a história. Gostei também muito do uso da luz, criava dinâmicas muito interessantes que enriqueciam o enredo. No que diz respeito ao som, em particular à música, gostei, uma vez que senti que intensificava a cena. Também apreciei o efeito visual do fumo do cigarro, pois sugeria uma atmosfera mais antiga e bucólica.

A interpretação foi excelente. É um bom exemplo de como, muitas das vezes, não é preciso mais do que um ator para contar uma história. Não é necessário existir uma pessoa para cada personagem, este é capaz de nos dar a ver múltiplas pessoas. Só é preciso haver códigos claros e saber jogar com eles. E o ator Miguel Amorim soube jogar muito bem: todas as personagens que fazia tinha um gesto e/ou uma voz que a identificava, pelo que a transição entre estas era muito clara. Era possível ver a narrativa, ver as diferentes pessoas à nossa frente, era quase como se conseguisse tocá-las, como se conseguisse ver o que traziam vestido. Para além disto, é de realçar a relação de cumplicidade que conseguiu estabelecer com o público. O ator olhava e falava diretamente connosco várias vezes na peça de uma forma muito tranquila e verdadeira. Nesses momentos, esquecia-me de que estava numa sala de espetáculos, parecia uma conversa.

No fim do espetáculo, após a morte de Tchartkov, o ator responde indiretamente à pergunta que coloquei anteriormente: "quero ser uma dessas pessoas?" Este afirma que prefere matar-se a acabar como o pintor Tchartkov, por outras palavras, não quer ser uma dessas pessoas.  Contudo, a verdade é que nós somos seres em construção e, por esse motivo, a pessoa que somos ou que desejamos ser hoje pode não ser a mesma que desejamos ser amanhã.  Aliás, o próprio pintor foi, em tempos, uma pessoa com sonhos e uma vida modesta. O que é que nos garante que não iremos tomar as mesmas decisões que ele? Nada, é impossível ter certezas, haverá sempre uma percentagem de imprevisibilidade na nossa vida. No entanto, não é também esse risco que nos faz querer viver?

O Autor

De Tim Crouch

Na Boutique da Cultura


De 5 a 15 de setembro de 2024


Figura 35 O Autor Leva-nos A Refletir Sobre A Violência (chmagazine.pt)


O Autor ou "O Espectador"? O Autor é uma peça sobre uma peça de um dramaturgo chamado Tim Crouch. Apesar de Tim Crouch ser um dramaturgo, encenador e ator conhecido, a peça retratada é meramente fictícia. Durante o espetáculo, é-nos então contada a história desta peça: uma peça abusiva e violenta que deixou marcas quer nos atores, quer no autor, quer nos espectadores. Contudo, o que torna O Autor revolucionário não é a violência nem o abuso retratados, mas sim o questionamento do lugar do espectador. Nesta peça, os convencionalismos que, habitualmente, separam os atores dos espectadores são praticamente inexistentes. Os atores estão connosco desde o momento em que entramos na Boutique da Cultura, vestem-se e falam como espectadores normais. Quando as portas se abrem, entram e sentam-se ao nosso lado, como se fossem espectadores.  Não existe um palco, existem somente duas fileiras de cadeiras frente a frente. Os atores usam os seus nomes reais, interpelam-nos diretamente e convidam-nos a participar na conversa. Perguntam-nos o nome, como nos sentimos, onde moramos, se gostamos da Boutique da Cultura, distribuem chocolates... Tudo se confunde, sentem-se os nervos, o constrangimento e a confusão na plateia. O espectador passa a ser o centro das atenções e é um protagonismo para o qual não está preparado. Conseguimos ouvir em cada gesto, em cada olhar, em cada palavra a pergunta: qual é o meu lugar?

Para além da questão do espectador, uma das temáticas mais interessantes na peça são os problemas relacionados com a profissão do ator. O ator tem que desenvolver uma consciência de si e uma certa distância da personagem. Uma distância a que eu gosto de chamar de distância de segurança, isto é, o ator sempre que representa deve entregar-se ao papel, mas sem nunca perder consciência de quem é. Caso contrário, pode perder-se e tornar-se na personagem que estava a representar. Há inúmeros atores que enlouqueceram e, inclusivamente, se suicidaram depois de fazerem um "grande papel". Isto normalmente acontece com aquelas personagens extremas,  nomeadamente assassinos em série, violadores, psicopatas, pessoas com esquizofrenia ou outro tipo de condições mentais... Na peça fictícia que é abordada neste espetáculo, um dos atores desempenhou um papel de um violador. E isso impactou-o de tal forma, que começou a ter comportamentos violentos na sua vida quotidiana.  Outro grande perigo que está espelhado neste espetáculo é a questão da exposição a conteúdos violentos. Qualquer ator ou encenador, ao iniciar um projeto, faz uma pesquisa aprofundada sobre os temas que quer retratar. No caso da violência, este estudo deve ser feito com muita cautela, uma vez que estar permanente exposto a imagens ou vídeos violentos gera violência ou conduz-nos simplesmente à loucura.

Foi a primeira vez que assisti a esta peça e, por isso, foi interessante perceber como é que algumas questões, que passam despercebidas no papel, são um desafio para os atores e para o público. Além disto, como já referi, é uma peça intrusiva e intimidante do ponto de vista do espectador. Neste sentido, é uma experiência que, enquanto público, tenho sempre interesse em vivenciar.

Esta é uma peça, por si só, impactante. Apresenta temas horríveis como a guerra, a violação... Contudo, apesar de reconhecer que o que estava a ser abordado era terrível, não consegui sentir esse impacto. E isto tem consequências no próprio equilíbrio da peça. O Autor vive de um equilíbrio entre a tragédia e a comédia, dito de uma forma simplificada. Os momentos cómicos surgem para não só não sobrecarregar o espectador, para aliviar a tensão, mas também para dar mais poder às partes mais dramáticas. No entanto, como os momentos mais chocantes não eram marcantes, quando a comédia aparecia, ficávamos com a sensação de que algo estava descompensado. Por outras palavras, o espetáculo estava desequilibrado.

O cenário e a luz obedecem religiosamente às instruções de Tim Crouch que expressa na peça. O cenário é inexistente, não existe qualquer tipo de palco, a peça desenrola-se na plateia, como já referi. A luz, a meu ver, acaba por ser uma bengala para os atores, visto que se apaga nos momentos mais difíceis. Além disto, neste espetáculo é utilizada a projeção. Contudo, penso que esta não acrescentava muito e baralhava o foco do espectador.

Relativamente à interpretação, fiquei um pouco desiludido. Eu via as imagens, mas a verdade e a sensibilidade que esta peça exige, de uma forma geral, não estavam lá. Não conseguia deixar de ver os atores a representar, em vez de ver as personagens. Porém, é relevante referir que isto foi o que eu senti naquele dia e naquela hora e a arte é extremamente subjetiva. Para além disto, é importante referir que representar que não se está a representar, mantendo uma relação direta com o público, é das coisas mais difíceis de fazer. É bastante complexo, pois é uma situação onde os atores estão muito vulneráveis.

O espetáculo termina e os atores levantam-se e agradecem. Contudo, este ato teatral tão comum, não faz sentido nenhum n´O Autor. Esta peça não contempla agradecimentos: todos os atores saem da sala, exceto o ator que faz de espectador. Este continua a conversar com o público, até sentir que faz sentido. Deste modo, quando os atores se levantam e agradecem estão a desfazer tudo o que estiveram a construir durante uma hora e meia. A rutura com o convencional é abandonada, só me resta perguntar: porquê?

Querido Evan Hansen

Uma adaptação portuguesa do musical de Steven Levenson

No Teatro Maria Matos


De 11 de setembro a 29 de dezembro de 2024

Figura 34 Teatro Maria Matos


Querido Evan Hansen ou "Querido Espectador"? Este espetáculo começa com uma carta; uma carta escrita por Evan Hansen para Evan Hansen. Este jovem, vítima de ansiedade social e de depressão, é aconselhado pelo seu psiquiatra a escrever diariamente uma carta a si mesmo, começando da seguinte forma: "Querido Evan Hansen, hoje vai ser um dia bom porque..." Infelizmente, na atualidade, há cada vez mais pessoas que sofrem de ansiedade. Evan Hansen é somente um entre muitos que enfrentam este problema todos os dias. O título: Querido Evan Hansen podia então ser facilmente substituído por "Querido Espectador". Este espetáculo é uma grande carta dirigida a todos os espectadores. Uma carta repleta de amor, de coragem e de compaixão. Uma carta que nos convida a olhar em volta e a ver que não estamos sozinhos.

Esta peça é sobre Evan Hansen, um jovem tímido e ansioso, que, após o suicídio do colega Connor e um mal-entendido vê uma oportunidade de ter a vida que sempre quis: amigos, namorada, popularidade e uma família feliz. Contudo, com o passar dos dias e o escalar da mentira, este vai, progressivamente, perdendo o controlo.

Nesta peça são abordados temas que raramente têm a atenção da sociedade, nomeadamente a ansiedade social, a depressão, a solidão, e o suicídio.  No entanto, antes de continuar, é relevante dizer que a ansiedade abordada neste espetáculo não se resume àquele friozinho na barriga, enjoo ou dificuldade de respirar de vez em quando. Não se trata de uma ansiedade provisória, mas de uma ansiedade permanente. Uma ansiedade que não nos larga por nada deste mundo, que nos impede de fazer a nossa vida normal e que nos tira a vontade de viver. Uma ansiedade que está tão intrínseca em nós que nos faz questionar se não faz parte da nossa personalidade. A ansiedade social é um tipo de ansiedade que afeta muitas pessoas. É caracterizada pela dificuldade de comunicar e de estar com outras pessoas. Várias pessoas conseguem camuflá-la ou simplesmente aprender a viver com ela, mas também há quem não consiga. Há quem seja dominado por ela, isolando-se. Contudo, a realidade é que a própria sociedade também contribuiu para este isolamento, rejeitando-as, chamando-as de estranhas. Como consequência deste isolamento, chega a solidão, um dos sentimentos mais cruéis. É uma mistura de medo, de tristeza e de vazio. A solidão aliada à falta de esperança leva, por sua vez, à depressão. E a depressão está a um passo muito curto do suicídio. O suicídio é, talvez, dos temas mais complexos de se abordar. O que é que leva uma pessoa a cometer o suicídio? Como é que não percebemos que aquela pessoa estava mal? Onde é que falhámos? Estas são algumas das perguntas que atormentam os familiares destas pessoas e que estão presentes na peça através dos pais e dos amigos do Connor. A peça, tal como a sociedade, não nos dá uma resposta definitiva para estas questões. Alerta-nos apenas para a importância de cuidarmos e de estarmos atentos ao outro, de forma a garantir que ninguém se sinta sozinho. É uma excelente mensagem, contudo, não abarca a infeliz realidade de que há pessoas que, infelizmente, não querem ser ajudadas e há outras que simplesmente não se abrem connosco. E, como nós enquanto seres humanos ainda não temos o poder de ler mentes, não vale a pena massacrarmo-nos com a culpa. O que podemos então fazer para seguir em frente? Esta peça dá-nos uma pista: podemos tentar ajudar quem conseguirmos e espalhar a mensagem para prevenir outros suicídios.

Houve, porém, um aspeto desta peça que me deixou inquieto: porque é que Evan Hansen alimentou a mentira? No início do espetáculo é fácil dar-lhe razão. Há um equívoco, os pais do Connor pensam que este e Evan eram amigos, e este, por uma questão de ansiedade, não é capaz de desmenti-los. A garganta falha-lhe e ele começa a construir uma mentira elaborada. Isto é, de certo modo, compreensível, visto que as situações de stress são propícias para dizer mentiras. Não se tratam de mentiras maliciosas, mas apenas de disparates frutos do pânico. No entanto, esta personagem teve muitas oportunidades para travar esta mentira e para pedir desculpa. Porque é que então não o fez? Na minha opinião, este teve um vislumbre do que a sua vida poderia ser e decidiu aproveitá-lo até soarem as doze baladas e tudo regressar ao normal. O protagonista sabia, portanto, que o que estava a fazer era moralmente errado, mas a natureza humana, a ganância, falou mais alto.  É óbvio que isto não desculpa as suas ações, todavia ajuda-nos a perceber melhor esta personagem e o ser humano, de uma forma geral.

Se pudesse resumir todas as reflexões a que o espetáculo me conduziu, diria que a mentira tem perna curta; a morte pode alterar a imagem que tínhamos das pessoas; o "bullying" consegue ser muito subtil; os pais nem sempre sabem tudo; a honestidade é a base de todas as relações; na internet é mais fácil de comunicar do que na vida real; os mortos vivem na memória dos vivos; a redenção é sempre uma opção; e uma ação consegue ser, simultaneamente, boa e má, dependendo da perspetiva.

Este espetáculo não é um musical como todos os outros e, como tal, merece uma encenação diferente. Uma encenação sem piruetas, sem cenários elaborados e sem pessoas a explodir de alegria. Noutras palavras, uma encenação mais crua, mais simples, mais real. E é precisamente este tipo de encenação que encontramos no Teatro Maria Matos, uma encenação mais psicológica e justa.

É um espetáculo vibrante, cujo som, a luz, as palavras e a melodia formam uma dança comovente.

Relativamente ao cenário, gostei do facto de ser minimalista e atual. Mais do que mostrar imagens, este sugeria ambiências. Além disto, apreciei ver os músicos a tocar no fundo do palco. A luz também se inseria nesta linha da simplicidade, era clara e eficiente, ajudando a contar a história. O som, por outro lado, tinha um papel protagonista neste espetáculo. Gostei particularmente de ouvir música ao vivo, é uma sensação completamente diferente de ouvir um instrumental, através das colunas.

A interpretação foi muito boa. Era contemporânea, sendo, por isso, despojada dos grandes maneirismos e dos exageros do teatro musical. Foi, a meu ver, muito adequada ao musical que escolheram dar vida. Os movimentos dos atores eram os necessários e tinham significado. Quanto à voz, esta estava muito bem trabalhada, quer a nível falado, quer a nível cantado. O canto surgia no momento em que a fala se esgotava, trazendo uma emoção a que ninguém fica indiferente.

O espetáculo termina com um final feliz. "Spoilers" à parte, o protagonista aceita-se a si próprio e é perdoado. Mas será que isto é realista? Eu penso que não. No teatro tudo parece simples e alcançável, sentimo-nos capazes de tudo, até de nos aceitarmos. No entanto, quando a cortina fecha, voltamos à dura realidade que é a vida, aos seus altos e baixos; àquelas alturas em que acreditamos e àquelas em que deixamos de acreditar nas nossas capacidades. Uma canção não chega para nos aceitarmos, para nos dar uma vida feliz. É um processo que demora meses, anos e que talvez nunca chegue a concretizar-se. Contudo, o importante não é aceitarmo-nos, mas sim a nossa vontade permanente de continuar a tentar. Noutras palavras, é acordar todos os dias e dizer para nós mesmos: "Querido eu, hoje vai ser um dia bom porque...".

Heisenberg - O princípio da incerteza

De Simon Stephens

No Teatro Aberto


De 28 de junho a 28 de julho e de 7 de setembro a 27 de outubro de 2024

Figura 33 Ana Guiomar e Virgílio Castelo juntos na peça de teatro onde o amor não tem idade – NiT


Heisenberg - O princípio da incerteza ou Heisenberg - A incerteza desde o princípio? Este espetáculo parte da exploração do princípio da incerteza de Heisenberg. Mas em que consiste este princípio? Segundo o físico alemão, é impossível determinar, ao mesmo tempo, a posição e o movimento de uma partícula com máxima precisão. Esta descoberta não se esgota, no entanto, na área científica. Simon Stephens mostra-nos que esta contribuição se estende também ao mundo do pensamento e das artes. A partir deste princípio, conseguimos perceber como é que o mundo funciona e, mais concretamente, como é que as pessoas funcionam. Não é possível observar uma pessoa com toda a nossa atenção e, simultaneamente, prever as suas ações. Se conseguimos antecipar o que esta irá fazer significa que não estamos a observá-la na totalidade. Neste sentido, podemos concluir que vivemos num mundo incerto repleto de incertezas. Isto não é, contudo, nada de novo: os seres humanos são seres incertos desde o princípio dos tempos. No entanto, esta informação básica só se torna alvo de reflexão, a partir de peças como esta. A arte tem esta capacidade de nos mostrar o que sempre existiu. Esta peça é interessante por esse motivo, por nos mostrar o que sempre lá esteve, mas que, por alguma razão, não vimos. Por outras palavras, realça a intemporalidade e universalidade deste princípio. Faz-nos perceber que a incerteza é uma parte integrante da nossa vida, da condição humana e que é também esta que nos faz querer viver. Afinal, se a incerteza não existisse, se fôssemos todos seres meramente previsíveis, a vida não teria graça nenhuma. A vida seria, sem dúvida, controlada, mas não seria vivida. Viver é caminhar todos os dias sobre uma corda que pode a qualquer momento ceder, é acordar todos os dias para a incerteza. 

Esta peça começa numa estação de comboios em Londres. Nesta, um homem britânico mais velho chamado Alex  é surpreendido por uma mulher americana mais nova, chamada Georgie. Esta pede-lhe desculpa e afirma tê-lo confundido com outra pessoa. Todavia, a partir desse momento propositado ou não, nasce uma relação imprevisível entre estes dois estranhos.

Assistir a esta peça foi uma oportunidade única de experienciar a incerteza em primeira mão. Durante uma hora e quarenta, tentei perceber a ligação entre a história e o princípio de Heisenberg e confesso que não cheguei a grandes conclusões. Isto é, obviamente que existe uma ligação e que podemos pensar sobre ela; no entanto, a verdade é que qualquer história sobre seres humanos seria, melhor ou pior, uma história sobre este princípio. Noutras palavras, penso que esta relação foi ligeiramente forçada. Talvez seja por este motivo que a peça não me tocou. Não me fez sentir nada em concreto, apenas estimulou o meu pensamento. Ao sair do teatro, não senti o coração cheio, imerso no indescritível...limitei-me a processar intelectualmente o que tinha acabado de ver. E isso é muito triste, porque nos faz sentir robots em vez de pessoas.

O texto desta peça deixou-me dividido. Por um lado, como os diálogos não tendem a seguir uma estrutura lógica e previsível, a peça torna-se, por vezes, aborrecida. É como se estivéssemos permanentemente a assistir a um carro a tentar arrancar. Por outro lado, esta monotonia é absolutamente fascinante, visto que são nessas pausas de pensamento que a peça acontece. São nesses momentos indefinidos que a vida vai acontecendo. A vida não se resume apenas aos seus altos e baixos, viver é também saber estar nesse meio, nesse tédio aparente.  Para além disto, penso que o texto é engraçado e muito difícil de prever, espelhando, de certo modo, a complexidade do ser humano. 

Outro aspeto que me marcou foi a questão das personagens. Estas são completamente opostas, em termos de idade e de personalidade. Alex vive preso a um passado apaixonado e, simultaneamente, conformado com o presente. Este é reservado, introvertido e calmo.  Georgie, pelo contrário, é hiperativa, engraçada e intrusiva. E, apesar do que diz, esta não está nada conformada com a sua situação atual. Todavia, ambos têm comportamentos muito pouco expectáveis. Georgie engana Alex durante algum tempo, acabando por lhe pedir dinheiro. E Alex, não só lhe dá o dinheiro, como ainda se oferece para a ajudar. Tratam-se, portanto, de duas personagens muito diferentes, mas unidas nesta sua humanidade.

Heisenberg-O princípio da incerteza abrange temas relevantes que raramente são abordados: a velhice, o abandono e a grande diferença de idades numa relação amorosa.  Este último é, provavelmente, o mais gritante do espetáculo: Alex podia ser pai de Georgie. Contudo, concordando ou deixando de concordar com este tipo de relações, foi muito curioso ver esta questão refletida numa peça de teatro. São-nos apresentadas duas perspetivas relativamente à natureza destas relações: amor ou dinheiro. E quando o pano cai, não sabemos bem qual destas é que ganhou, a única coisa que resta é a incerteza.

Um espetáculo desconcertante, que nos deixa sem saber reagir. Tanto somos invadidos pelo riso, como por uma sensação de vazio.

Relativamente à utilização do vídeo, não gostei nem desgostei. Este tinha um papel de destaque principalmente durante as mudanças de cena. Nestas, enquanto o cenário era alterado, passava um vídeo da personagem do Alex a passear pelas ruas de Londres. Estes vídeos tinham como objetivo estabelecer uma continuidade entre as cenas da peça, devido aos grandes intervalos temporais entre estas. Mostravam-nos, deste modo, o que não teríamos acesso ao ler a peça. Apesar de não ser necessário, penso que era uma ideia interessante. O problema, na minha opinião, residiu na escolha sonora. Esta consistia em música pop atual: músicas de Justin Timberlake, Sam Smith... , pelo que não condizia com o registo do espetáculo. Parecia que estávamos a sair do Teatro Aberto e a abrir uma série da Netflix. Apreciei particularmente o cenário, este era simples, mas extremamente funcional. Resumia-se a várias colunas de madeira que permitiam a construção de imagens muito diferentes, facilitando a narrativa.

Os atores foram, a meu ver, bastante bons. Para além de terem conseguido prender a minha atenção praticamente o tempo inteiro, estes tinham uma clara noção das diferentes nuances do texto.

O espetáculo termina e pergunto-me se o que acabei de assistir não é completamente contraditório. Afinal, este parte de uma certeza sobre a incerteza. No entanto, se pensarmos bem: o que é que não é contraditório? A vida em si é contraditória: nós nascemos para morrer. O ser humano é, portanto, um ser naturalmente contraditório. Um ser com atitudes completamente inesperadas; um ser que pode estar triste e, ao mesmo tempo, feliz. Em poucas palavras, um ser incerto. A contradição não é mais do que a vivência da incerteza. Neste sentido, o ser humano deve abraçar a incerteza, pois aprender a viver com esta é aprender a viver consigo próprio. A incerteza é, desta forma, algo que devemos cuidar e que não devemos subestimar. No dia em que a incerteza der lugar à certeza é o princípio do fim: deixamos de ser seres humanos e tornamo-nos homúnculos.

Todas as tuas lágrimas não serão suficientes

De Petronille de Saint-Rapt

Nos Recreios da Amadora   


De 19 de junho a 23 de junho e de 28 de junho a 2 de julho de 2024

Figura 32 Todas as tuas lágrimas não serão suficientes - Teatro dos Aloés na Amadora - Atletismo Magazine Modalidades Amadoras (ammamagazine.com)


Todas as tuas lágrimas não serão suficientes ou Todas as tuas lágrimas não são suficientes? Este espetáculo passa-se num futuro próximo, onde não resta uma gota de água. Nesta situação catastrófica, nem todas nossas lágrimas seriam suficientes para nos manter vivos. Contudo, apesar de falar do futuro, este é um espetáculo sobre o presente. Utiliza o futuro como um mecanismo para abordar a situação atual, para sensibilizar a população. O choque e o horror atraem a atenção das pessoas e o medo fá-las, muitas vezes, agir. Além disto, este espetáculo mostra-nos que chorar não é a solução, é inútil no presente e será inútil no futuro. Chorar não irá, magicamente, travar o desperdício atual, nem irá trazer a água de volta. Dito de outra forma, nenhum arrependimento resolve ou resolverá esta situação por nós. A solução reside, portanto, em agir agora. No futuro, quando só restarem as nossas lágrimas, não haverá nada a fazer. Neste sentido, não vamos perder tempo a chorar. Atualmente é possível fazer alguma coisa, é possível prevenir isto. O que fazer então? Infelizmente, este espetáculo não nos apresenta soluções concretas. Diz-nos somente o que não devemos fazer, expondo os nossos maiores erros. Contudo, isso já nos permite encontrar um caminho mais sustentável, uma vez que é a partir dos nossos erros que evoluímos enquanto sociedade.

Pessoalmente, a questão ambiental não é um tema que me faça vir ao teatro. Todavia, penso que é muito importante que este tema seja abordado em sociedade e, mais particularmente, no teatro. Pondo de lado as minhas preferências pessoais, penso que esta foi uma peça muito educativa, escolar. Este tipo de peças vomitam uma série de factos básicos como se constituíssem uma novidade e culpabilizam-nos por tudo, neste caso, pela falta de água. Eu estou um pouco cansado de ouvir falar do clima sempre deste modo. É tudo muito agressivo e moralista e o efeito também não é o desejado. Afinal, a culpa não atrai o público, afasta-o. Como é óbvio, ninguém gosta de se sentir atacado. As pessoas em vez de agirem, ficam, portanto, chateadas, revoltadas. Por outras palavras, a mensagem é excelente, mas a forma como é transmitida não o é. Para além disto, penso que estas peças ignoram o seu público-alvo. Quem vai ao teatro na atualidade, são pessoas que, por norma, desejam a mudança e que já têm este tipo de preocupações. Por isso, penso que o público alvo destas peças deveria ser precisamente quem não vai ao teatro: os líderes mundiais, os donos de empresas milionárias que desperdiçam imensa água, entre outros. Não sei, no entanto, até que ponto é que isto é exequível, uma vez que não sabemos se estas pessoas estariam dispostas a assistir a uma peça de teatro. Mas também o que perdemos em tentar? Outro aspeto que me desagradou foi a questão do coro. Nesta peça, havia uma espécie de coro do clima, formado por jovens que, esporadicamente, diziam alguns factos climáticos. Eu gostei do facto de trazerem uma perspetiva mais nova para o espetáculo, porém, penso que este coro acentuava o lado infantil da peça. O final da peça foi o cúmulo de tudo isto: todos a correr pelo espaço numa grande confusão descontrolada. Apesar de tudo isto, apreciei as pequenas histórias que eram contadas ao longo da peça. Estas eram envolventes e contrastavam com o carácter informativo e interventivo da peça, trazendo-lhe algum equilíbrio.

Trata-se de um espetáculo gritante, de um espetáculo que respira preocupação e intervenção. E, apesar de ser extremamente educativo, relembra-nos de um facto básico muito importante: a água é um bem essencial à vida.

O cenário refletia a dualidade da peça, era simultaneamente poético e factual. Por um lado, o palco estava repleto de garrafas de plástico com flores sem água, formando, assim, uma imagem marcante. Por outro lado, estavam dispostas mesas e cadeiras no centro e no fundo do palco criando uma imagem política e formal.  Relativamente à luz, não apreciei alguns "blackouts". Os "blackouts", geralmente, servem para separar as cenas. Contudo, neste espetáculo, senti que estes não estavam a cumprir a sua função. Havia certos cortes que não faziam muito sentido, penso que algumas cenas poderiam ter simplesmente continuado. No que diz respeito ao som, gostei da música francesa que os atores cantavam. Apesar de o meu francês não ser o melhor, conseguia distinguir algumas palavras. Além disto, penso que existem efetivamente outros tipos de compreensão que ultrapassam a semântica. 

A interpretação foi boa. Eram os atores que, na minha opinião, "salvavam" a peça. Estes tinham uma clara consciência do corpo e do espaço e penso que a qualidade do gesto estava muito bem desenvolvida.  No entanto, penso que as mudanças de cena estavam um pouco sujas. Relativamente aos jovens que constituíam o coro,  estes destoavam muito dos atores, relembrando-me de que estava a assistir a uma peça. Isto é, porém, perfeitamente normal, visto que são mais novos e têm menos formação e experiência. Contudo, a verdade é que a diferença era visível e, por vezes, era difícil ignorá-la. 

Um mundo sem água, já pensamos o que isso seria? É um pouco difícil de imaginar, uma vez que o fim da água significaria o fim da humanidade. Afinal, o ser humano não sobrevive sem água, em média, mais do que três dias.  É triste pensar que a água é, simultaneamente, a nossa salvação e a nossa perdição. É, todavia, ainda mais triste pensar que o destino da humanidade está nas nossas mãos. Está nas mãos de um ser que sempre deu tudo por garantido e a água nunca foi uma exceção.  Um ser que vive para o presente e, quanto muito, para um futuro muito próximo.  Um ser que só dá valor a algo quando o perde. Mas porquê perder tempo a culpá-lo, a culparmo-nos? Eu penso que nós não escolhemos ser desleixados, apenas temos outras prioridades definidas. Distraímo-nos com a vida e com as suas preocupações diárias e não temos tempo nem espaço para um problema maior. O problema reside então no que nós, enquanto espécie, consideramos prioritário. E enquanto a preservação da água não se tornar a nossa prioridade principal, a humanidade continuará em risco. Neste sentido, a água deve ser uma preocupação quotidiana, caso contrário, a vida vai continuar como se nada se passasse e um dia, quando acordarmos, não vão restar mais do que as nossas lágrimas. 


1001 Noites-Irmã Palestina

Cocriação do Teatro O Bando, da Companhia Olga Roriz e da Banda Sinfónica Portuguesa

No Teatro São Luiz


De 30 de maio a 2 de junho de 2024

Figura 33 Quem te salvará da morte Irmã Palestina? (jn.pt)


E se o teatro nos pudesse salvar? 1001 noites - Irmã Palestina é um espetáculo muito bonito. Este, tal como o nome nos sugere, condensa alguns dos contos populares do Médio Oriente e do Sul da Ásia reunidos na famosa obra: "As Mil e Uma Noites". Nesta, uma jovem chamada Xerazade casa-se com o rei: Xariar. Este, traído pela sua primeira mulher e de forma a evitar ser traído no futuro, todos os dias casa-se com uma mulher diferente, matando-a no dia seguinte. Xerazade, para sobreviver, todas as noites conta uma história ao rei. Ao deixá-lo no suspense, esta adia a sua morte para o dia seguinte. Passadas mil e uma noites, o rei acaba por apaixonar-se por ela, arrependendo-se e abandonando a sua conduta. Esta história dá-nos esperança, esperança num mundo onde a arte possa salvar vidas humanas; onde se possa apelar à humanidade de cada um, impedindo que atos atrozes sejam cometidos, que guerras sejam travadas... Por outras palavras, um mundo onde a arte possa educar. Um mundo que regresse às suas raízes, afinal o ato de contar histórias é um ato primitivo. Antes de o teatro sonhar em existir, contavam-se histórias e as pessoas ouviam e aprendiam com estas. Não é por acaso que se contam histórias às crianças para as educar. É através desse ato que se transmite a moral e o sistema de valores de uma cultura. Neste sentido, podemos dizer que esta peça acredita no papel da arte enquanto elemento transformador da sociedade. Se eu partilho desta visão positiva? Confesso que não. Afinal, se este espetáculo fosse apresentado na Faixa de Gaza, será que mudava alguma coisa? Provavelmente não, apenas poria em risco a vida dos atores. Mas porquê? Na minha opinião, para contar histórias é preciso que o público esteja disponível para as ouvir. E, na atualidade, penso que o problema é esse: a população está surda. É, por esse motivo que não progride, continua presa a estes conflitos, a estas guerras, sem um fim à vista. Porquê, então, continuar a contar histórias a um público que não ouve? Estes espetáculos são necessários, porque mantêm viva a esperança numa mudança. E, sem essa esperança, estamos perdidos.

O espetáculo, de uma forma geral, deixou-me um pouco perdido. Tinha tudo para ser um espetáculo inesquecível: boa música, bons atores e bons bailarinos. Porém, não pude deixar de sentir que faltava qualquer coisa. Saí do teatro sem perceber por que é que tinha esta sensação de distância em relação ao que tinha estado a ver. A única conclusão a que cheguei é que somos todos diferentes e, por essa razão, há espetáculos que mexem mais connosco do que outros. No fim de contas, o teatro é uma arte e, por esse motivo, não deixa de ser subjetivo.

Apesar disto, trata-se de um espetáculo muito completo, é um bom exemplo do que Wagner chamava de "obra de arte total". Integra várias formas de expressão artística: o teatro, a dança e a música.  São três tipos de linguagem distintos colocados em diálogo de uma forma muito fluída. Os bailarinos executam movimentos complexos com uma leveza e uma descontração que contagiam, por sua vez, a fala e a música. É muito interessante assistir a este cruzamento, faz-nos sobretudo perceber que o som e o movimento se dirigem à nossa compreensão de um modo muito diferente da fala.

Relativamente à conceção dramatúrgica, não gostei tanto. As histórias eram absolutamente fascinantes e a encenação conseguiu dar-lhes vida. Contudo, houve alguns momentos que não ficaram muito claros, nomeadamente o final, que não consegui perceber muito bem. E creio que não era essa a intenção.

No que diz respeito ao som, este foi bastante impactante. Ouvir um grupo de trinta músicos a tocar ao vivo não deixa ninguém indiferente. O cenário foi um dos meus aspetos favoritos. Este consistia numa estrutura semelhante a uma carroça, que dava para ser utilizada sob variadíssimas formas. Neste sentido, para além de ser muito prático, gerava uma série de possibilidades inesperadas, de imagens impactantes. Também gostei bastante dos figurinos, visto que tornavam todas as histórias mais ricas. Parecia que tinham sido magicamente retirados dos livros e trazidos para a realidade.

A interpretação foi muito boa, sendo de destacar a clareza do movimento. Este tinha um papel fundamental na nossa compreensão, pois, como já tinha referido, a narrativa era muito complexa. Para além disso, como os atores eram poucos e as histórias eram muitas, cada ator fazia várias personagens. O movimento, juntamente com o cenário, era então que o nos orientava. Outro aspeto que me despertou interesse foi o facto de a personagem da irmã de Xerazade ser feita por uma atriz palestiniana. Gostei bastante de poder ouvir a língua árabe, sem qualquer tipo de legendas. Inicialmente fiquei um pouco desnorteado, mas com o desenrolar da peça perdi-me na beleza desta língua estrangeira.

Este espetáculo tem uma grande carga política associada, como conseguimos perceber pelo título. A irmã palestina é uma personagem que, apesar da barreira linguística, transmite um sofrimento muito grande e político. Contudo, confesso que, por algum motivo, não me impactou. Isto é, não senti aquele arrepio, aquela empatia ao ver o espetáculo. Senti que este foi completamente diferente de tudo o que vi até agora, foi um autêntico enxoval de imagens e de histórias. No entanto, a única coisa que levei comigo foi uma sensação de fantasia. Fiquei com a sensação de que assisti a um grande sonho, fruto da minha imaginação. É um sentimento muito infantil, mas que todos precisamos de experienciar com alguma frequência. É, por isso, que muitas pessoas leem, veem filmes, séries ou vão ao teatro. Um mundo onde tudo é possível, um mundo distante de nossa realidade é o que nos mantém sãos. É nele que podemos descansar da nossa vida e viver uma outra por uns instantes. Afinal, para quê viver, quando se pode sonhar?

Casa Portuguesa

De Pedro Penim

No Teatro Maria Matos


De 9 de maio a 7 de julho de 2024

Figura 32 Força de Produção - CASA PORTUGUESA (fproducao.pt)


Casa Portuguesa ou Casa Antiportuguesa? "Quatro paredes caiadas/Um cheirinho à alecrim/Um cacho de uvas doiradas... É uma casa portuguesa com certeza", raro é o português que não sabe a letra desta canção. Uma letra conservadora, conformista e fascista. Uma letra que promove um passado, que muitos portugueses afirmam ter deixado há muito. Um passado longínquo, afirmam eles. Um passado que não é senão o presente. Este espetáculo começa precisamente com esta crítica. Conta-nos a história do surgimento desta canção e faz o público sentir-se culpado por sabê-la de cor. No entanto, rapidamente percebemos que, apesar deste apego geral, esta casa está a ser ultrapassada. Por outras palavras, a casa portuguesa está a ser destruída. Está a desfazer-se, a cair aos pedaços. Surge então uma pergunta: o que é que está a ser construído sobre estas ruínas? Confesso que não gostei muito da resposta, propõem uma casa antiportuguesa no lugar de uma casa mais livre e mais aberta. Uma casa construída sob valores de ódio e de violência. E esta solução, para além de ser infantil, não é eficaz. Afinal, tudo o que é "anti" é algo que ainda pensa sobre aquilo que não o é. É algo que não cresceu, que não evoluiu. Para além disto, por que é que insistimos na matança? Porquê matar a casa portuguesa e construir uma casa antiportuguesa, quando podemos aprender com a primeira? Por que é que insistimos em combater violência com violência? Não aprendemos nada com a História? O fado é um símbolo nacional de Portugal.  E tornou-se neste símbolo, porque foi, efetivamente, aproveitado pelo Estado Novo. Existem, portanto, uma série de canções com letras fascistas, que se tornaram conhecidas e que continuamos a cantar. Todavia, a solução passa por parar de cantá-las, por bani-las? Ou a solução passa por contextualizar e por termos consciência do que estamos a dizer nessas canções? Canções bonitas e violentas sempre existiram e, provavelmente, sempre existirão. Abolir essas canções é entrar também num território perigoso, é roçar a questão da censura. Além disto, trata-se de uma estratégia muito pouco inteligente. Afinal, combater ódio com ódio não vai afastá-lo, pelo contrário, vai alimentá-lo.

A Casa Portuguesa é uma peça sobre um ex-combatente da guerra colonial. Nesta história ficcional, este vive assombrado pelo seu passado, assistindo, simultaneamente a uma mudança drástica de valores, outrora inabaláveis, como: o ideal de casa, de família, de país... São convocados ainda vários temas relevantes, nomeadamente o lugar da mulher, o machismo, o fascismo, o racismo, o colonialismo, a questão queer...

Eu gostei muito da forma como o conceito de casa foi explorado nesta peça. Aparece como um conceito muito lato, um conceito que abarca muitos espaços e definições. Transcende um espaço físico e particular, estendendo-se a um espaço psíquico e social. Não se trata da nossa casa, em específico, mas da casa dos portugueses. Isto é, do espaço a partir do qual retiramos os nossos princípios, os nossos valores, o espaço que acompanha e orienta o nosso crescimento. E este espaço é volátil, transforma-se com o tempo.

Apreciei também a presença dos Fado Bicha, uma vez que senti que proporcionavam um equilíbrio ao espetáculo. Através da música e de um metateatro engraçado, descansavam a cabeça do espectador. Tornavam a peça, de certo modo, menos pesada. Contudo, penso que a introdução da questão queer foi algo forçada. Acredito que é  muito necessário falarmos destes temas, porém, penso que, neste espetáculo, não fazia muito sentido.

Um dos aspetos mais debatidos nesta peça é o conceito de masculinidade. A masculinidade é vista como algo que deve ser erradicado, algo que não trás nada de bom. Eu não gostei da forma como este conceito foi utilizado, por várias razões. Em primeiro lugar, a masculinidade não é exclusiva ao género masculino, trata-se de um conceito social. E, neste espetáculo, surge como uma espécie de sinónimo deste género que, por sua vez, é considerado lixo. Em segundo lugar, existem vários tipos de masculinidade, nomeadamente a masculinidade tóxica. Tal como diz o nome, esse tipo de masculinidade não é saudável. No entanto, neste espetáculo, esta distinção não tem qualquer tipo de importância, é tudo colocado dentro do mesmo saco. A masculinidade é vista como o inimigo, independentemente de ser tóxica ou não. Gostava de salientar que é muito importante condenarmos e consciencializarmos a sociedade para os comportamentos machistas e tóxicos dos homens. Porém, penso que é importante deixar claro que nem todos os homens têm este tipo de comportamentos incorretos. Para além disto, a masculinidade é um conceito que, sendo social, é mutável. É algo que se altera com o tempo. Neste sentido, penso que a masculinidade deve ser orientada, e não extinta.

Na Casa Portuguesa, tudo é reduzido a uma lógica binária: ou és a favor, ou és contra. (O que não deixa de ser irónico, visto que rejeitam por completo o binarismo (de género)). Esta lógica, que encurta o pensamento, é o mecanismo favorito dos extremistas. Na vida real, as coisas não são nem só pretas nem só brancas. O preto e o branco são somente as escolhas mais fáceis. É muito fácil aceitar extremismos, o difícil é pensarmos pelas nossas próprias cabeças e defendermos as nossas ideias. Acredito, no entanto, que este espetáculo possa ter tido este objetivo de provocar para nos fazer pensar, mais do que nos incutir ideias. Todavia, independentemente de isto ser verdade, este  é, de certo modo, perigoso para pensadores preguiçosos. Para quem escuta e aceita, sem questionar. O teatro tem esta característica fantástica de ser um espaço livre, um espaço onde se pode dizer tudo, sem grandes repercussões. Contudo, o teatro é feito para pessoas e é preciso ter consciência disso. A ficção é ficção, mas a ficção torna-se realidade, quando o público sai da sala e leva o que viu para a sua vida. O teatro, como já referi múltiplas vezes, é uma forma de propaganda. As palavras proferidas pelos atores, não são só palavras, são armas de pensamento.

Outro aspeto que mexeu comigo, foi a questão da culpa. Pessoalmente, não gosto de ir ao teatro para levar sermões. Ou seja, não gosto de ser responsabilizado por coisas que não fiz e que em circunstância alguma faria. Reconheço que é muito importante conhecermos o passado do nosso país, percebermos o que aconteceu, sermos confrontados com tais atrocidades para que estas não se repitam. Contudo, há uma diferença entre sensibilização e culpa. Felizmente, eu não sou os meus antepassados, não sou fascista, nem colonialista. E este mecanismo que é utilizado para responsabilizar o público, não me dá vontade nenhuma de agir, pelo contrário, deixa-me irritado. Esta escolha dramatúrgica distrai-me do que é relevante, destas temáticas urgentes. Apesar disto tudo, uma coisa é certa: não me vou esquecer deste espetáculo tão cedo.

Não posso também deixar de mencionar uma outra questão: nem todos os portugueses foram fascistas ou colonialistas. Portugal esteve sob poder do regime salazarista, porém, havia muita gente que não concordava com este regime. Caso contrário, não teria existido o 25 de abril. Grande parte dos soldados não queria ir para a guerra colonial, estes foram obrigados a ir. Isto obviamente não desculpabiliza os inúmeros atos atrozes praticados em África, que não são mencionados nos nossos manuais de história. Nada do que menciono apaga esses massacres. Todavia, temos de ter consciência que, muitos destes soldados, foram para a guerra contra a sua vontade. Foram forçados a abandonar as suas casas, o seu país para irem lutar numa guerra, que não apoiavam e da qual muitos não regressaram. A personagem do avô representava esses soldados e, contrariamente ao que é referido no espetáculo, penso que essas pessoas são vítimas, porque tiveram de viver com a guerra. E a guerra não é algo que se esqueça, é algo inimaginável que marca uma pessoa para a vida.

Um espetáculo de generalismos para revoltar o espírito português. É impactante, precisamente pela controvérsia que lança. Mantém a nossa atenção do início até ao fim.

Este espetáculo colocou-me numa posição um pouco angustiante. Por um lado, não concordava com o que a maior parte das personagens dizia ou, pelo menos, com a forma como colocavam as coisas em perspetiva. Por outro lado, não queria dar razão à figura do avô, pois isso significava dar razão à tradição. Contudo, penso que a figura do avô não era o que aparentava ser.  O avô nunca poderia simbolizar exclusivamente a tradição, porque a tradição não se questiona a si mesma. A tradição é precisamente algo estático, algo que se aceita pela sua duração. E o avô passou o espetáculo inteiro a questionar-se. Vivia inquieto com o seu passado. E não há nada mais humano do que o arrependimento, do que a dúvida.

Relativamente ao cenário, gostei bastante. Este consistia numa casa destruída, decadente. Era bastante coerente com o tema do espetáculo e tinha um grande impacto visual. Também apreciei bastante o som, os Fado Bicha são muito agradáveis de ouvir. A beleza melódica contrastava com a carga irónica das canções, proporcionando uma ambiência engraçada.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi boa. Não existiam tempos mortos, cada cena estava bem sustentada energicamente. De uma forma geral, correspondeu às minhas expectativas.

Sentado na plateia, após o fim do espetáculo, não pude deixar de pensar no ridículo de tudo aquilo. No ridículo de, passados milénios, ainda estarmos a discutir as mesmas coisas. Não pude deixar de pensar que, se todos nos reconhecêssemos como pessoas, como iguais e, consequentemente, nos tratássemos todos com o devido respeito, a ditadura, o colonialismo, o racismo... nada disso existiria ou teria existido. E este espetáculo, por sua vez, também não teria razão de ser. A realidade é que continuamos a repetir os mesmos erros vezes e vezes sem conta. Vamos ao teatro e o que é que aprendemos? Saímos de lá revoltados e sensibilizados, mas no dia a dia o que é que muda? Continuamos a viver na Casa Portuguesa?


Se te portares bem, vamos ao McDonald´s!

De Mário Coelho

No Teatro Ibérico


De 17 a 20 de maio de 2024

Figura 31 ©Ana-Viotti_Se-te-portares-bem-29-1024x683.webp (1024×683)


Se te portares bem, vamos ao McDonald´s! Ou Se te portares bem, vamos comer o McDonald´s!? O título deste espetáculo capta a atenção de qualquer espectador. E remete, imediatamente, para o imaginário desta peça: um mundo infantil com muita ironia à mistura. "Se te portares bem, vamos ao McDonald´s" é uma frase que seguramente já ouvimos os nossos pais dizer, por estas ou por outras palavras. E, apesar de ser uma frase engraçada e até nostálgica, está carregada de significado. Em sete palavras condensa a natureza das relações humanas da atualidade. "Se fizeres o que te é pedido, és recompensado", no fundo, somos todos educados como os cães de Pavlov. Contudo, esta lógica de estímulo-recompensa não é sustentável. A determinada altura, o ser humano perde-se neste ciclo vicioso e enlouquece. Transforma-se num ser esvaziado de sociedade e regressa às suas raízes primitivas. Torna-se num autêntico animal. Certo dia, este já não quer ir ao McDonald´s, quer comê-lo.

Esta peça distingue-se de todas as outras que vi, pela sua peculiaridade. Num futuro próximo, uma empresa disponibiliza pessoas para satisfazerem desejos e vontades. Os seus trabalhadores estão preparados para personificar quem for preciso. Aquela avó que nunca conheceram, aquela irmã que partiu cedo demais... Estes permitem que essas famílias passem mais um dia, um mês, um ano... com essa pessoa que perderam. O espetáculo centra-se numa trabalhadora dessa empresa, que aceita fazer-se passar por uma menina de sete anos que faleceu. Esta integra então uma família extremamente perturbada e disfuncional, constituída por uma mãe, um irmão e uma irmã (mais velhos).

Nesta peça são abordados temas muito relevantes, sendo de destacar a questão do luto. Podemos substituir alguém que já partiu? Como sarar essa dor? Como recuperar de uma morte inesperada?  Acredito que uma perda é sempre uma perda, mas perder alguém tão novo, deve ser uma dor inimaginável. Como é que se supera uma perda dessas? É mais fácil fazer as pazes com a morte, quando a pessoa que perdemos já tem alguma idade. Há algo de lógico nessa perda, que nos ajuda, posteriormente, a sarar a dor. Perder um irmão de sete anos é diferente. Como é que se ultrapassa essa dor? Eu não sei responder a esta pergunta, mas acredito que é impossível substituir essa pessoa. Aliás, a própria peça transmite-nos a mensagem de que o ser humano não é substituível, ou, dito de outra forma, que o capitalismo não é a solução para todos os nossos problemas.

Para além disto, mostra-nos que a realidade e a ficção são facilmente confundidas. Resume-se tudo a uma questão de perspetiva, e isso é um pouco assustador.

Se te portares bem, vamos ao McDonald´s! é também uma peça que faz referência ao trabalho do ator. Afinal, uma empresa que contrata pessoas para se fazerem passar por outras, podia facilmente ser confundida com o Teatro D. Maria II.  No início da peça, assistimos, inclusivamente, aos treinos de preparação dos trabalhadores e percebemos que estes não são diferentes dos exercícios de preparação dos atores. A única e grande diferença reside no facto de uns representarem no teatro e os outros na vida real. E, se representar no teatro pode ser perigoso, representar na vida real é o caminho direto para a loucura.

É, sem dúvida alguma, o espetáculo mais bizarro que já vi. Trata-se de um bizarro cómico, mas que esconde uma realidade dura e séria. Isto fez-me nunca perder a atenção, fiquei preso à ação do início até ao fim.

Este espetáculo é uma grande sátira ao capitalismo. Este, que tomou conta da economia, toma agora conta da vida humana. A vida humana aparece, assim, como um produto que podemos comprar.  A morte deixa de ser irreversível, é possível suborná-la. Assistimos ao dinheiro a substituir a humanidade. É horripilante, parece aqueles filmes de ficção científica de 2350. No entanto, é ainda mais arrepiante perceber que já existe uma empresa semelhante no Japão...

O cenário da peça consistia em quatro divisões de uma casa, dispostas lado a lado: o quarto da criança, a sala de estar, uma espécie de varanda interior e a sala de jantar. Parecia uma autêntica casa de bonecas. Além disto, esta organização juntamente com o uso das luzes tornava bastante claro os espaços de ação. Eu gostei bastante desta simplicidade, uma vez que contrastava com a complexidade da peça. Apreciei também a utilização do vídeo para apresentar a temática do espetáculo. Relativamente aos figurinos, estes estavam inseridos dentro de uma estética quotidiana. E isso fez-me muito sentido, visto que esta "normalidade" trazia algum equilíbrio ao espetáculo.   

Relativamente à interpretação, penso que foi excelente. Fiquei surpreendido com a capacidade de os atores transitarem de um registo mais quotidiano para um registo mais surreal. Para além disto, devido à grande complexidade do espetáculo, cada personagem tinha várias camadas. E os atores tinham uma clara consciência disso. Estes escolhiam muito bem o que queriam mostrar a cada momento e, simultaneamente, carregavam tudo o que não queriam revelar na fala e no gesto.

Com a conclusão a aproximar-se, era expectável que escrevesse qualquer coisa do género: "quando o espetáculo chega ao fim....", todavia, a realidade é que este espetáculo não tem um fim, convencionalmente, definido. A cortina não fecha, os atores não vão agradecer. O público simplesmente percebe que o palco está a ser limpo e que, por isso, chegou o momento de sair da sala. Não é convencional, mas também praticamente nada neste espetáculo o é. Perto dos últimos minutos, quando o público pensa que está finalmente a perceber o que se passa, a ficção e a realidade trocam de lugar. Assistimos a vários acontecimentos "fora do normal". O espectador fica completamente perdido, já não sabe sequer como reagir. É surpreendido por situações tão inesperadas, fica completamente sem tapete. Quando saí da sala, senti-me confuso, mas entusiasmado. Entusiasmado por perceber que o teatro ainda não morreu, que há ainda muitos caminhos por serem descobertos e que essa procura criativa ainda persiste. Resta-me então apenas uma pergunta: E depois do McDonald´s, para onde vamos?


Uma Vida No Teatro

De David Mamet

No Teatro Aberto


De 27 de março a 26 de maio de 2024

Figura 30 UMA VIDA NO TEATRO de David Mamet - TEATRO ABERTO


Uma Vida No Teatro ou Uma Vida Pelo Teatro? Ser ator implica fazer sacrifícios, requer uma grande disponibilidade física e mental. Este espetáculo, mais do que mostrar o quotidiano dos atores, mostra-nos o esforço e as cedências envolvidas nesta profissão. Os atores sacrificam o seu eu,  têm a generosidade de se subtraírem à equação para nos proporcionarem um bom espetáculo. Independentemente de estarem felizes, tristes ou chateados, de terem atritos com os colegas de trabalho, estes têm esta capacidade de doar a sua vida à arte. Por outras palavras, de pôr em "stand by" por uns minutos.  Claro que isto não acontece literalmente, isto é, os atores nunca abandonam por completo o seu ser para se entregarem ao outro. Estes não reencarnam ninguém, apenas cedem os seus pensamentos para outros habitarem. Para além disto, existem também uma série de compromissos relativamente à vida privada dos atores. Ser ator envolve fazer escolhas, envolve escolher um estilo de vida diferente. É preciso cuidar do corpo, da voz e da mente, é preciso ceder as noites em prol dos espetáculos e o resto do dia para os ensaios. Neste sentido, penso que os atores não constroem uma vida no teatro, apenas abdicam parcialmente da sua.   

Esta peça centra-se na relação quotidiana entre dois atores: John (mais novo) e Robert (mais velho). Expõe as diferentes perspetivas destas duas gerações em relação à vida e ao teatro, dando-nos, por isso, uma visão mais completa do que implica ser um ator, a curto e a longo prazo.

Pessoalmente, não conhecia esta peça, no entanto, a minha opinião divide-se. Por um lado, penso que é um pouco arrastada. Em primeiro lugar, porque esta procura retratar a vida de dois atores, sendo, por isso, naturalmente vagarosa. Em segundo lugar, por ser algo desatualizada na sua comédia. A peça foi escrita em 1977 e penso que há alguma comédia que se perde com o tempo. Há efetivamente aspetos que são intemporais, como por exemplo: os momentos de brancas, de não saber quando entrar no palco,  os  momentos de leitura e de análise do texto, os vícios do trabalho, a questão da beleza acima da qualidade da representação, o aquecimento corporal.... Estas piadas mais genéricas faziam o público rir, em particular os atores e quem trabalha diariamente com os mesmos. Todavia, não pude deixar de sentir falta de piadas mais incisivas e atuais. Por outro lado, penso que a peça contém em si um ponto muito interessante: parece que nada se passa, mas tudo se passa naquelas duas horas.  As cenas são muito curtas e insólitas. E o público não está habituado a este tipo de peças. Não está habituado a ir ao teatro ver a vida, está habituado a ver algo que o estimule, que o faça rir e/ou chorar, que o entretenha. Está habituado a ir ver a vida reduzida aos seus altos e baixos... Em peças sobre a vida persiste então esta questão: agradar o público ou dar-lhe algo de novo?

Uma Vida No Teatro é uma peça parcial. Esta é feita por atores e sobre atores. No entanto, existe alguma peça imparcial? Provavelmente não, dado que é na parcialidade que vivem as visões do mundo. Esta peça apresenta uma perspetiva sobre a arte de representar, com a qual não podia concordar mais. Ser ator é mais do que uma profissão, é uma vida. Envolve todo o ser (o corpo e a alma) e deixa marcas. O teatro faz parte da vida de cada ator. Não fica nas salas de ensaios, vai com estes para casa e regressa no dia seguinte. Penso que é uma das poucas profissões em que faz sentido perguntar: o que é que queres ser quando fores grande? O teatro faz parte da identidade de um ator, não é um extra. Estes definitivamente não fazem o que fazem por amor ao dinheiro, fazem-no por amor à vida.

Apreciei bastante o facto desta peça dar ênfase à relação entre os atores mais velhos e os mais jovens. Evidencia as diferentes formas de estar na vida e no teatro destas duas gerações. Os mais velhos acreditam que devem ensinar os mais jovens. Dizem-lhes, frequentemente: "Cala-te e ouve". Porém, o que estes não percebem é que estas duas coisas não são mutuamente exclusivas. Além disto, há uma espécie de nostalgia por parte dos mais velhos, um sentimento que o seu tempo já passou. E este sentimento é muito avassalador para um ator. Despedir-se do teatro deve ser como enterrar uma parte de si mesmo. Os atores mais velhos pensam, assim, na efemeridade das coisas, na morte. Os mais jovens, por contraste, são mais práticos, vivem para o presente e revelam um certo entusiasmo em relação à vida e à representação. Há um brilhozinho nos olhos deles. É também interessante perceber que há algo de ridículo, quando estas duas gerações são postas em confronto. Rapidamente percebemos que nenhuma tem razão, que cada uma tem as suas imperfeições.

É ainda uma peça algo contraditória. Procura aproximar-se do real e, simultaneamente, coloca os atores a fazerem de atores. Há uma certa comédia associada a esta vontade de expor uma realidade baseada numa ficção.

É um espetáculo desconcertante e pesado, mas não num sentido trágico. Não procura comover o público, procura fazê-lo pensar, deixá-lo com inquietações.

O som e a luz tinham um papel importante, pois marcavam as mudanças de cena. Funcionavam, portanto, como uma espécie de separadores. Os figurinos surpreenderam-me, penso que nunca vi tanto vestir e despir numa peça... Estas trocas de roupa aliadas ao som e à luz davam-nos uma noção da passagem do tempo.

O cenário seguia a conceção geral do espetáculo sendo, por si só, interessante. O público via os bastidores dos atores e, à frente destes, um palco pequeno virado para a parede. Era como se o público "verdadeiro" estivesse a assistir ao espetáculo e nós estivéssemos, secretamente, a assistir a este mundo fora de cena. Proporcionava-nos, deste modo, esta perspetiva inversa. Todavia, a questão da tinta azul, deixou-me com algumas dúvidas. Os atores utilizavam esta tinta para marcar a transição de ator para personagem, para distinguir a ficção do quotidiano. Porém, não será que o figurino, o discurso, a utilização do espaço e a corporalidade já faziam a clarificação desse corte? Qual era a função da tinta?

No que diz respeito à interpretação, gostei bastante. No entanto, surgiu-me uma questão: porque é que o assistente de palco não estava incluído na interpretação? Afinal, este era uma personagem. Este fazia parte da peça, a única  grande diferença era que não tinha falas. E as falas não são um requisito para se ser considerado ator, visto que um ator é muito mais do que o texto que diz e do que a forma como o diz. Os atores não são cabeças-falantes. Neste sentido, tratando-se de uma peça metateatral, porque não levar o metateatro até ao fim?

O espetáculo termina tal como começa: com a realidade. Os atores arrumam as suas coisas e saem do palco. O público fica na dúvida se realmente acabou. Eu gosto particularmente de ver o público desorientado porque reflete alguma diferença no modo de se fazer teatro. O imprevisível é o caminho mais interessante. O público pode não gostar deste tipo de peças, no entanto, não pode acusar ninguém de incoerência. O início não foi convencional e, por isso, o final também não o foi. Ao sair da sala, restam-me algumas perguntas por responder: quando o espetáculo termina, a vida dos atores começa? Ou a vida nunca parou de ser vivida e os atores têm várias vidas? Concluí que os atores não param de viver para fazer uma personagem, não têm uma vida à parte no teatro, nem têm várias vidas no teatro. A vida de um ator não para, nem se multiplica, esta desdobra-se, assumindo diferentes formas. Deste modo, ser ator é ser permeável a outras vidas, sem nunca perder a sua. 

Na Medida do Impossível

De Tiago Rodrigues

Na Culturgest


De 17 a 25 de abril de 2024

Figura 29 Tiago Rodrigues | Culturgest


Na Medida do Impossível ou Como Traduzir o Impossível? Conseguimos traduzir por palavras e gestos o indecifrável? Se medir o possível é complicado, imaginemos medir o que não tem medida... É um título contraditório, mas também o que é a nossa existência se não um conjunto de contradições?  Neste espetáculo, o mundo parece estar dividido em dois: o possível e o impossível. O possível incluiu tudo o que nós conseguimos conceber de bom e mau.  O impossível abrange o inconcebível, o que vai para além da nossa imaginação, o que vai para além das possibilidades, quer seja bom ou mau. No impossível assiste-se a atos extraordinários: desde uma criança que morre para outras duas sobreviverem a uma senhora que limpa o sangue da bata de uma enfermeira imediatamente após o seu filho ter morrido.  Não são referidos nomes de países ou de cidades do possível e do impossível. Eu penso que esta distinção é, por si só, suficiente. Afinal, para quê atribuir nomes, se infelizmente falamos de algo universal e intemporal?

Este espetáculo foi concebido a partir de entrevistas com pessoas do Comité Internacional da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem Fronteiras. Desta forma, partilha connosco uma realidade que não é frequentemente noticiada. Mostra-nos um pouco da vida destes trabalhadores humanitários, destas pessoas que abandonam as suas famílias para ir ajudar outras, que se comprometem com o impossível.

É uma peça inovadora pela sua humanidade. Faz-nos perceber que estes voluntários não são super-heróis. Estes são pessoas que têm de fazer escolhas de vida ou de morte todos os dias, e de viver com isso.  Deste modo, isto torna-se, para eles, mais do que um trabalho. Vêem-se obrigados a fazer o impossível no impossível. Ninguém vive indiferente nestas circunstâncias. Cada dia deixa marcas e remorsos. Não é o trabalho moralmente gratificante que as pessoas promovem, é um trabalho devastador. Sempre que regressam a casa, regressam diferentes, levam para o possível todas as histórias do impossível.

Apreciei particularmente a multiplicidade das línguas. Tornou bastante claro que todos aqueles assuntos eram transversais a qualquer país ou cultura. E que, no fundo, as legendas não são necessárias, quando só existem duas línguas: a humana e a inumana.

É um espetáculo muito impactante, o texto está carregado de imagens perturbadoras, de imagens inimagináveis.  Pessoalmente, penso que é muito mais fácil apagar imagens estrangeiras, ou seja, imagens que não são criadas por mim, do que imagens que são construídas na minha cabeça a partir de palavras que ouvi. 

Um dos aspetos que mais apreciei foi o facto do espetáculo não ser moralista. Confesso que estou cansado de ir ao teatro para me darem um sermão. Na Medida do Impossível apresenta-nos a realidade tal como ela é, sem qualquer tipo de filtros e de julgamentos. Deixa os moralismos para nós.

Penso que foi a primeira vez que saí de um espetáculo, sem nenhuma vontade de escrever sobre ele. E isto aconteceu, não porque me tenha deixado indiferente, mas porque me deixou perdido, sem palavras, sem qualquer tipo de pensamento. Esvaziado de emoções e de lógica, fui assoberbado pelo nada.

O som resumia-se a uma bateria e tinha um papel muito importante. Este, sem darmos por isso, acompanhava o texto. Contribuía, assim, para intensificar aqueles momentos mais catárticos. Contudo, também havia momentos onde tinha um papel protagonista, dirigindo-se diretamente ao público.

O cenário tinha um impacto visual muito forte. Cada pessoa ao entrar na sala, estando ou não na conversa, parava para observar aquele tecido gigante que cobria o palco. Inicialmente, lembrou-me uma casa abandonada, mas rapidamente percebi que essa casa poderia facilmente ser uma cidade abandonada, uma cidade do impossível. Gostei muito do facto do cenário se metamorfosear ao longo da peça. Este ia subindo,  convertendo-se, por isso,  noutras imagens. Com o desenrolar do espetáculo, com o desvendar daquela realidade tão distante da nossa, íamos começando a ver a cidade por dentro. A certa altura, era como se estivéssemos dentro do impossível ou dentro de uma grande tenda que nos protegia dele.

Relativamente à interpretação, esta era extraordinária. Os atores contavam-nos histórias horríveis, mas de uma forma tão real, que parecia que eles próprios as tinham testemunhado. Eles viam aquelas imagens terríveis e, por isso, faziam-nos vê-las também. Era como se assistíssemos a pequenos filmes. Os momentos dramáticos estavam muito bem articulados com os momentos de comédia. A anticatarse da comédia potenciava a catarse. Por outras palavras, os momentos mais profundos ganhavam mais força, por existirem os momentos mais leves. Com o passar do tempo, já nenhuma piada me fazia sorrir. Gostava ainda de destacar um monólogo que me surpreendeu muito. Neste, um dos atores dizia, a um ritmo que parecia a roçar o rap, uma série de coisas que nos arrepiavam. Nunca tinha visto nada assim, foi mesmo impressionante. Há de facto uma musicalidade inerente às palavras, independentemente da língua, que não deve ser descorada.

"Eu sei que não vou mudar o mundo",  esta é uma frase difícil de ouvir da boca de um trabalhador humanitário. Se não vão mudar o mundo, o que é que estão a fazer? Esta é a pergunta que frequentemente sucede à afirmação anterior, e que, para além de ser irrealista, espelha a mentalidade humana. O ser humano tem esta tendência de reduzir tudo a uma lógica binária: ou se muda o mundo ou não se muda nada. Nunca há um intermédio. Mas porque é que o ser humano tem esta mania da grandeza? Porque é que nos consideramos especiais a ponto de resolver todos os problemas do mundo? Porque é que há esta pressão de salvar todos, se salvar uma pessoa já é uma vitória? Neste espetáculo, percebemos que os voluntários têm esta consciência da condição de pequenez do ser humano. No entanto, esta consciência não é a aceitação de uma derrota, mas sim o início de uma luta infindável. Estas pessoas procuram conhecer os seus limites para poder ultrapassá-los. Noutras palavras, é conhecendo o impossível que podemos fazer o impossível.

Quis Saber Quem Sou

De Pedro Penim

No Teatro São Luiz


De 20 a 28 de abril de 2024

Figura 28 Quis Saber Quem Sou - Teatro São Luiz (teatrosaoluiz.pt)

 

Quis Saber Quem Sou, ou Quero Saber Quem Serei? Este espetáculo, embora dedicado à comemoração dos cinquenta anos do vinte e cinco de abril, tem uma função interventiva. Mais do que celebrar a consciência coletiva do povo português de 1974, é importante alertar a população para os perigos futuros. Por outras palavras, é preciso acordar Portugal! É preciso reconhecer que estamos a regredir, que a nossa liberdade de expressão pode vir a ser posta em causa, se não estivermos atentos. Deste modo, neste momento, é crucial perceber quem é que queremos ser: um povo com ou sem liberdade? Um povo com ou sem medo? Quis Saber Quem Sou é uma frase que remete para um passado onde uma inquietação gerou uma revolução. Para já não precisamos de nenhuma revolução, precisamos de estar despertos. E estar desperto passa por estarmos conscientes do presente, mas também do futuro. O querer saber quem sou torna-se então no querer saber quem serei. E quem é que quero ser? Eu quero ser uma gaivota que voe, voe e não se cale.

Por momentos, questionei-me se deveria escrever sobre este espetáculo. Afinal, os atores fizeram questão de reforçar que este não era nem uma peça de teatro, nem um musical, nem um concerto. Intitularam-no de concerto teatral, tendo consciência de que se trata de uma designação um pouco estranha. No entanto, em vez de me perguntar porquê, perguntei-me por que não? Por que não escrever sobre um dos espetáculos mais marcantes que vi? O que é que interessa se é uma peça, um musical ou um concerto? Por que é que insistimos em atribuir tantos rótulos dentro da arte artística? A arte é um espaço de liberdade, contudo, tem estas barreiras entre as áreas que a compõem. É um pouco contraditório, porém, isto é visível. O próprio público fica desnorteado, quando vê, por exemplo, um espetáculo que cruza teatro e dança. Eu gostei particularmente deste espetáculo por nos proporcionar esta frescura. Não é teatro, não é música, nem é dança, é um híbrido. E para quê atribuir um nome a algo tão único?

Dentro da sala de espetáculos, o ambiente era muito descontraído, o público podia levantar-se, cantar e aplaudir, como se estivesse num concerto. Só este pormenor trouxe-me liberdade e deixou-me mais relaxado na plateia.  Todavia,  foi engraçado ver a reticência do público em interiorizar estas possibilidades. Para além do fator da vergonha, as pessoas dificilmente acreditam nos atores. Pensam sempre que faz tudo parte da peça. E os atores foram bastante diretos connosco, disseram explicitamente que não queriam um público sério. Contudo, a verdade é que existe este tratado implícito de que tudo o que é dito no palco é ficção, sendo, por isso, muito difícil quebrá-lo.

A questão do coro também foi muito bem abordada. Quando pensamos num coro, pensamos frequentemente num conjunto de indivíduos que fazem tudo da mesma maneira. Pensamos numa espécie de rebanho. Ora, o rebanho é fácil, visto que o ser humano tem uma certa tendência para seguir a carneirada. O que é difícil é manter a individualidade de cada um num coletivo. E o que é um coro senão um conjunto de indivíduos? Isto aplica-se não só a nível do teatro, mas também a nível político-social. É importante celebrarmos a liberdade e lutarmos para que esta permaneça; no entanto não nos podemos esquecer de quem somos pelo caminho. 

As canções eram muito bonitas e estavam muito bem trabalhadas. Contudo, não foi o canto que me cativou, mas sim a experiência coletiva que proporcionaram. Ouvir todas aquelas pessoas que enchiam o Teatro São Luiz a cantar a "Grândola Vila Morena" e o "Somos Livres" foi muito comovente.  Para além disso, apesar de terem genericamente a função de aviso e de celebração da liberdade, cada canção incidia sobre uma área de intervenção.  Vários temas que floresceram com o vinte e cinco de abril estavam retratados, como a mulher, a homossexualidade, a independência das colónias...

É também relevante mencionar o metateatro. Este dispositivo antidramático servia bem o espetáculo, pois criava uma espécie de equilíbrio emocional necessário no espectador. E, surpreendentemente, não estragava os momentos mais emocionantes, onde a música nos conduzia a sentimentos de revolta e de união popular; pelo contrário, potenciava-os.

A linguagem gestual foi um aspeto que me intrigou bastante. Foi a primeira vez que a vi incorporada numa peça de teatro e fiquei muito curioso. É uma linguagem lindíssima que se aproxima da dança. Dei por mim a pensar: como é que se trabalha o movimento aqui? Parece existir uma linha muito fina entre o gesto da fala e o gesto teatral.

Uma das frases que mais me marcou do espetáculo foi: "A minha língua é uma citação". O que é o ser humano senão alguém que cita tanto quanto respira? Não conseguimos não citar, é mais forte do que nós. Dificilmente dizemos algo de único, porque a realidade é que somos educados por citações. Aprendemos e crescemos com o que os outros dizem e fazem. Desta forma, toda a nossa vida é construída em torno de citações. Somos uns autênticos papagaios andantes. Com ou sem consciência disso, o que fazemos e dizemos é uma citação do que vimos os outros a fazerem ou a dizerem. Torna-se, assim, óbvio que a nossa língua é uma citação. Esta existe porque os seus falantes a citam constantemente. Portanto, fazer uma citação mais convencional é, na verdade, fazer uma citação de uma citação.

E o que seria este espetáculo sem citações de citações? Eu penso que não funcionaria muito bem, uma vez que poria em causa a questão do lugar de fala. Isto é, há determinados temas dos quais não podemos falar sem ter passado por eles. Ou melhor podemos, mas do que é que vai servir a nossa opinião? Devemos socorrer-nos dos testemunhos de quem passou por essas situações que nos são longínquas, para abordar esses temas. E, neste espetáculo, sendo o elenco constituído por jovens entre os dezoito e os vinte cinco anos, a utilização de citações torna-se quase obrigatória. Estes não viveram a revolução, no entanto, escolhem falar sobre ela e cantá-la. É muito tocante assistir a este diálogo entre as gerações mais velhas e as gerações mais novas, ver tantas pessoas reunidas por uma causa tão antiga e determinadas a lutar por ela.

"Toda a arte é propaganda, mas nem toda a propaganda é arte". Já não é a primeira vez que ouço esta frase e certamente não será a última; contudo, faz-me cada vez mais sentido. A arte é uma manifestação cultural sobre a vida, uma apresentação artística de uma posição no mundo. E, por isso, vai sempre ser política. Quis Saber Quem Sou é um espetáculo muito direto, sem um pingo de imparcialidade. Encontra-se neste limiar entre a arte e a mobilização política.

O cenário agradou-me muito. Este delimitava a área do palco utilizada e era bastante simples. Havia umas escadas brancas que faziam lembrar a Antiguidade Clássica e, por cima delas, em meia lua, vários espelhos. Estes criavam uma ilusão de espaço muito interessante. De repente, aqueles treze jovens pareciam ser o triplo, o quádruplo... parecia que Portugal inteiro se encontrava sobre aquelas escadas.

Relativamente à interpretação, penso que foi excelente. Havia uma clara consciência dos diferentes registos do espetáculo e cada um era levado até ao fim. Os atores conseguiram, sem dúvida, levar o público às lágrimas. Este saiu do teatro com o coração nas mãos e com uma grande vontade de lutar no peito. 

Quando o espetáculo terminou, eu próprio Quis Saber Quem Sou. Agora posso dizer com convicção que sou liberdade, tal como todos os portugueses. Porém, rapidamente percebi que o importante não é satisfazer esta curiosidade, mas sim continuar a tê-la. Continuar nesta procura por uma identidade coletiva e, simultaneamente, individual. Continuar a querer saber quem fui, quem sou e quem serei para evitar que os próximos 50 anos sejam vividos num país sem cravos.



Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco

De Maria Quintans

No Teatro São Luiz


De 10 a 14 de abril de 2024

Figura 27 blueticket.meo.pt/Event/10476/OS DEMÓNIOS NÃO GOSTAM DE AR FRESCO


Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco ou Os Demónios Gostam de Ar Reciclado? O habitat natural desta espécie são espaços fechados como uma casa, um quarto, um sótão, uma despensa... Quanto mais pequeno e  claustrofóbico melhor. Gostam de lugares onde o ar não circula, onde o pensamento não renova. Neste sentido, nada melhor do que a nossa cabeça para nela subsistirem. Todos nós, embora sob diferentes formas, temos os nossos demónios e somos obrigados a conviver com eles diariamente. Às vezes jantamos, dormimos, passeamos com eles... E é aí que a linha entre a ficção e a realidade se esbate. Um dia acordamos e percebemos que não saímos do sofá. Ora, será que isto invalida o que experienciámos? Só porque veio do nosso imaginário, do nosso inconsciente, significa que não é real? Onde é que a ficção acaba e o real começa? Este é um espetáculo que, através de uma fusão muito inteligente entre o teatro e o cinema, nos deixa com perguntas por responder. Por um lado, tanto o que vemos no ecrã como em palco é ficção, porque tem um guião por trás.  Por outro, a esquizofrenia da realização contrasta com a materialidade dos corpos dos atores em cena. Dando-nos, portanto, a ilusão de que é aí que reside a realidade.

A peça escrita por Maria Quintans parte do mundo interior do realizador sueco Ingmar Bergman,  um dos maiores artistas do século passado. Este espetáculo, partindo desta peça, concilia o mundo cinematográfico de Bergman com o mundo do teatro, do qual tanto bebeu tanta inspiração para os seus filmes. Através da câmara somos transportados para a ilha de Fårö, e através do palco somos trazidos de volta à realidade.   

Neste espetáculo, temos acesso às mentes de quatro demónios universais: a Morte, o Medo, o Silêncio e Deus. Estes conceitos aparecem personificados, dando-nos uma nova perspetiva sobre eles. Uma perspetiva mais humana, talvez. Afinal, alguma vez tínhamos pensado em como seria ser a Morte? Como seria ser o Silêncio? Como seria ser o Medo? Ou como seria ser Deus? Passamos tanto tempo a combatê-los, que nunca nos predispusemos a ouvi-los. De repente, estas figuras que nos atormentam a alma são desmistificadas. Percebemos que a finitude não tem de ser necessariamente algo terrível, que Deus bem podia ser uma mulher, que não há ninguém com mais medo do que o Medo e que o Silêncio por vezes não se cala.

Os Demónios Não Gostam de Ar Fresco é um espetáculo invulgar, que eu quis odiar, mas não consegui. Quis odiá-lo, porque estou cansado de ir ao teatro ver cinema ou uma mistura falhada dos dois. Pessoalmente, prefiro ver atores em tempo real. Todavia, desta vez não consegui desgostar.  Para além de fazer sentido com a temática do espetáculo, o modo como conseguiam articular estes dois mundos era brilhante. Contudo, a verdade é que a maior parte do espetáculo consistia em assistir no ecrã a uma conversa entre Bergman e os seus demónios.  Porque é que me convenceu então? Em primeiro lugar, porque a realização era extremamente cativante, remetia para um universo sufocante e alucinogénio. Parecia que estávamos dentro da cabeça do realizador. E em segundo lugar, porque os atores desconstruíam em palco precisamente o que tínhamos acabado de ver na tela. Inicialmente, faziam-no atrás da mesma, dando-nos a ver apenas sombras. Mais tarde, as luzes da plateia acenderam-se e os atores enveredaram por um metateatro muito engraçado.

Mas por que é que o metateatro funcionou? Esta foi outra das minhas inquietações. Concluí que funcionou por várias razões, entre elas a interpretação dos atores. O metateatro é uma das coisas mais difíceis de se fazer, precisamente porque exige uma grande simplicidade. Outro motivo está relacionado com a questão das instituições. A comédia advém também do facto dos atores terem escolhido fazer metateatro no Teatro São Luiz. Afinal, este é um local que emana, pela sua aparência, história e uma certa seriedade. Uma pessoa que vá a este teatro pela primeira vez, ao ser confrontada com isto, é apanhada de surpresa. Outro aspeto a ter em conta é a fama dos atores. Este espetáculo integrava uma série de nomes conhecidos, havendo, por isso, uma certa espectativa em relação ao que se vai ver. Muito antes da cortina subir, o público começa a imaginar o que vai ver, a partir do que já viu em espetáculos anteriores. E, ao deparar-se com algo inesperado, com estas figuras a fazerem algo tão informal, ri-se. Por fim, é evidente que esta forma de fazer teatro funciona por uma questão de identificação: o público que está dentro do mundo do teatro (encenadores, atores, estudantes...) reconhece certos comportamentos, indicações e vícios e, por essa razão, ri.   

Um dos pontos mais singulares do espetáculo foi o som. Durante uma hora e meia, uma violoncelista tocava das mais diversas formas, produzindo sons desconcertantes e subtis que nos acompanhavam nesta viagem estranha.

No que diz respeito à interpretação, penso que foi excelente. E é de reforçar que esta foi trabalhada para duas áreas distintas: o teatro e o cinema. Representar para uma câmara não é, nem nunca será, o mesmo que  representar para um público. Para além das diferenças ao nível da forma, o conteúdo era bastante distinto. O terror, a peculiaridade e a complexidade psicológica das personagens dos demónios contrastava com a desconstrução, a descontração e a comédia dos atores.

Antes da cortina se fechar ouvimos a canção Acordai de Fernando Lopes-Graça. Esta é uma canção que ressoa, que ecoa no fundo do nosso ser. É incapaz de deixar alguém indiferente. A imagem que precedeu este momento foi igualmente forte, vimos os demónios a lutarem contra o ar fresco e a morrerem asfixiados, um por um. Estes dois momentos tornaram bastante claro que os demónios são criados por nós. Estes aparecem e desaparecem de acordo com a nossa vontade. Nós vivemos neste sono permanente, neste estado inconsciente que nos faz crer que não temos qualquer poder sobre estas figuras que nos importunam. E perguntamo-nos várias vezes: mas que mal fiz eu a Deus? Como se todos aqueles seres não fossem criados pela nossa cabeça. É preciso acordar para perceber que o nosso maior demónio somos nós mesmos. E que tal darmos um passeio?


Diário de Uma República II

De Amarelo Silvestre

No Teatro São Luiz


De 3 a 14 de abril de 2024


Figura 26 Diário de Uma República II - Teatro São Luiz (teatrosaoluiz.pt)


O que é que queres ser quando fores grande? Um astronauta? Uma princesa? Uma bailarina? É como se o ser humano não existisse para além desta ideia de trabalho. Deixamos de ser indivíduos e tornamo-nos profissões. Neste espetáculo, são levantadas várias questões relativamente a esta temática, entre elas: Quem é que somos sem o trabalho? O que significa estar empregado ou desempregado aos olhos da sociedade? Ter emprego é sinónimo de ter dinheiro e/ou visibilidade? Quem trabalha é visto como um "bom partido", como alguém que "tem os pés bem assentes na terra". Os que não trabalham são vistos como preguiçosos. Todavia, quem trabalha não é necessariamente rico e/ou reconhecido. Trabalhar não é sinónimo de viver bem. E nem todos os empregos têm a mesma relevância social, há uma linha que separa os visíveis dos invisíveis. Um pescador, por exemplo, não tem o mesmo prestígio do que um médico. No entanto, como nos mostra o espetáculo, é na invisibilidade que reside a grandeza.

O Diário de Uma República II é um espetáculo que, fugindo ao convencional, aborda o conceito de trabalho, no seu sentido lato. Este, mais do que um manifesto sobre o trabalho, é uma provocação, um convite ao espectador para pensar sobre este assunto. 

Neste espetáculo, há um diálogo permanente entre o teatro e a fotografia, que me interessa. São projetadas várias imagens de trabalhadores invisíveis e de paisagens de Portugal. Sinto, cada vez mais, que o teatro, ou pelo menos a forma como é feito em Portugal, está confinado a uma caixa. É como se estivesse encerrado em si mesmo, com medo de se cruzar com outras áreas. Neste sentido, esta presença da fotografia fez-me questionar o seguinte: o que é o teatro? Onde é que este acaba e começa a fotografia? Sem resposta para estas perguntas e, assumindo o perigo de me contradizer, enveredei por outro pensamento: será que era preciso utilizar tantas fotografias? Afinal, não será que este desejo de fazer teatro através do visível poderia ter sido concretizado através da palavra? Não será a fotografia uma parte integrante do teatro? Acredito que existe em cada palavra, em cada respiração. Porém, apesar desta possibilidade, confesso que gostei deste intercâmbio artístico.  Em especial, porque considero que a fotografia contém em si uma crueza que o teatro dificilmente consegue transmitir. É imparcial, mostra a vida tal como ela é, sem qualquer tipo de filtro ou discriminação.

Em termos da conceção geral do espetáculo, penso que a utilização dos dispositivos audiovisuais foi um pouco excessiva.  Gostei da projeção das frases escritas em tempo real, uma vez que remetia para a ideia de diário. Porém, a estas frases que eram projetadas no fundo preto e na roupa dos atores juntavam-se as fotografias, os vídeos, os sons... Havia, por isso, muita coisa a acontecer em cena, tornando a experiência algo avassaladora. Todavia, sou somente um espectador entre muitos.

O som foi um dos aspetos que mais apreciei do espetáculo. O guitarrista, ao tocar, transportava-nos para outros mundos. Permitia que a nossa atenção viajasse a partir das fotografias para outras realidades. Por outras palavras, embalava o espetáculo, mas não necessariamente de um modo doce.

Relativamente à interpretação, fiquei um pouco desconcertado. Os atores eram bons, isto é, não tinham qualquer problema na enunciação do texto e notava-se que o corpo era bem trabalhado. Contudo, senti que as cenas "caíam" frequentemente, em termos de energia. E isto fazia-me perder a atenção. Todavia, é importante referir que eu vi o que aconteceu naquele dia àquela hora. E cada espetáculo é diferente, visto que os atores não são nenhuns robôs. Além disso, como já referi em críticas anteriores, tudo isto é extremamente subjetivo.

Este espetáculo fez-me perceber que a nossa sociedade gira em torno de duas coisas: trabalho e dinheiro. O dinheiro serve para assegurar a nossa saúde, segurança, alimentação, casa e o nosso lazer. O trabalho está relacionado com a nossa moral. Vivemos numa sociedade onde ser-se trabalhador é sinónimo de ser-se boa pessoa. O trabalho traz um sentimento de orgulho, de mérito, de reconhecimento e de realização pessoal, sem o qual não conseguimos viver. Estar desempregado é ser inútil, não só aos olhos da sociedade, mas também aos nossos olhos.  E isso é assustador. Trabalhamos para viver e vivemos para trabalhar. A nossa única esperança é a reforma. Sonhamos acordados com um tempo longínquo, mas tranquilo. Um tempo sem trabalho. E, ao chegarmos à reforma, percebemos que nos perdemos, que não sabemos quem somos fora dos nossos empregos, que não sabemos, portanto, viver sem trabalhar. E tudo isto acontece porque vivemos numa república capitalista, onde trabalhar se tornou uma necessidade tão básica como respirar.

Terror e Miséria no

Terceiro Reich

De Bertolt Brecht

No Teatro Armando Cortez


De 28 de março a 13 de abril de 2024

Figura 25 Terror e Miséria no Terceiro Reich | Teatro in Lisboa (timeout.pt)


Nem todos os alemães eram nazis? Esta é uma pergunta, aparentemente, ridícula. Afinal, é de conhecimento geral que o Terceiro Reich levou muitos alemães a emigrarem, a serem presos ou até mortos. No entanto, a verdade é que este lado da história é sempre menosprezado pelos manuais. Fala-se da Alemanha Nazi, mas não se fala da sociedade alemã em particular. Há um esquecimento dos indivíduos. Claro que isto é mais do que compreensível, uma vez que o regime deste país foi o responsável pela morte de 6 milhões de judeus. Porém, gostei muito de conhecer esta peça por nos dar precisamente o outro lado da moeda: o terror e a miséria na Alemanha Nazi. Mas que terror e miséria eram estes? As pessoas tinham medo das palavras, o terror espreitava a cada esquina. Bastava uma cruz nas costas para ficarem marcadas para sempre, sem se aperceberem.  A miséria também aparecia sem avisar. Neste espetáculo, assistimos ao funcionamento quotidiano de um regime que, para além da destruição que causou pelo mundo fora, destruiu a Alemanha por dentro: destruiu famílias, amigos, instituições... Derrubou tudo e todos. Neste sentido, mostra-nos que a miséria não é seletiva, que esta afeta toda a gente e que se propaga como uma epidemia.   

Esta peça foi escrita durante 1935 e 1938 por Bertolt Brecht. Retrata a sociedade alemã sob o domínio do Terceiro Reich (Alemanha Nazi). E é composta por várias cenas que não têm uma relação cronológica entre si. Oferece-nos uma visão global da sociedade alemã naquela época, desde os mais pobres aos mais ricos, dos mais comunistas aos mais nacionalistas. Vemos chicotadas, malas, comidas deixadas no chão, passos apressados, ouvimos gritos, telefones a tocar, a rádio....

Sentados na plateia, ficamos a observar uma gravação a preto branco em "loop" até o espetáculo começar. Os atores vestidos de operários arranjam-se. Embora a peça ainda não tivesse começado, isto remeteu-me imediatamente para uma ideia de ciclo. Ou seja, para a ideia do homem enquanto máquina, enquanto força de mão de obra e de massa política. Por outras palavras, para um homem que acata as ordens que recebe, sem questionar.

O Terror e Miséria no Terceiro Reich é também uma peça que aborda a questão da propaganda. Os meios de comunicação, nomeadamente a rádio e os jornais, serviram impecavelmente o regime. É assustador ver a facilidade com que as pessoas são manipuladas, através da palavra.  É tudo tão subtil que o absurdo rapidamente se propaga e angaria crentes. Não há nada tão perigoso como um político que saiba usar os meios de comunicação. Atualmente, estamos, infelizmente, a testemunhar as mesmas estratégias, mas com meios de comunicação diferentes. É muito importante estarmos conscientes disto para não sermos seduzidos para mais uma ditadura.

Este é um espetáculo político, tal como são todos os outros espetáculos de Brecht. O espectador não é convidado à catarse, mas sim à reflexão crítica.

Outro aspeto que gostava de mencionar é a questão da saudação nazi. É muito curioso como existem gestos que são universalmente conhecidos e dos quais temos um horror tremendo. A arte e o teatro em especial não olham suscetibilidades, pois estão protegidos pela premissa da ficção. Apesar da proteção moral, enquanto espectador é impossível ficar indiferente. Fez-me muita confusão ver a saudação Nazi a ser feita em palco. É pior do que vê-la no cinema, porque o teatro contém uma dimensão do real muito maior.

O cenário não era demasiado ilustrativo, nem demasiado abstrato. Era prático, servia a cena e facilmente se desdobrava para dar lugar a outras imagens.

Em termos de interpretação, gostei bastante. Estava com algum receio, visto que o Efeito V ou Efeito de Distanciamento de Brecht nem sempre é concretizado pelas companhias de teatro. (Chama-se Efeito de Distanciamento à criação de uma distância entre o ator e a personagem, isto é, não há uma vivência das emoções, o ator apenas nos apresenta a personagem e cabe ao público pensar sobre os seus comportamentos.) Estes atores surpreenderam-me e permitiram-me perceber que este efeito funciona não só através das histórias contadas sobre uma terceira  pessoa, ou através da quebra da quarta parede, mas também pela simples troca de personagens e de cenas.  Os atores trocavam tantas vezes de personagens que, inevitavelmente dava por mim a pensar: "Wow, ele acabou de fazer de  comunista e agora está a fazer muito bem de nazi. ". E era precisamente isto que Brecht desejava: quebrar com as paixões fortes e pôr o público a pensar. Além disto, como as cenas não tinham qualquer tipo de ligação, colocava-me imediatamente numa posição muito analítica. 

O fim da peça é o seu início e vice versa. Este pormenor é bastante interessante, pois deixa-nos um pouco claustrofóbicos. Cai-nos a ficha de que estamos presos neste ciclo vicioso do qual não conseguimos sair. E a partir daí surgem uma série de perguntas difíceis: o que é que podemos fazer para parar este ciclo? É possível sequer pará-lo? É possível vivermos num mundo sem terror e miséria? Talvez não, onde há bem há mal, onde há alegria e abundância há terror e miséria.

Girafas

De Pau Miró

Nos Artistas Unidos


De 7 a 30 de março de 2024


Figura 24 Girafas | (agendalx.pt)


Girafas ou Camaleões?

As girafas, por serem animais muito altos, têm uma visão privilegiada sobre o mundo. Vêem tudo e todos. Durante o século passado, estas invadiram países como Portugal, Itália, Alemanha, Espanha, entre outros. Neste espetáculo, as girafas são espanholas e vigiam tudo e todos. No entanto, não posso deixar de me questionar o seguinte: será que as Girafas atualmente, num contexto europeu, ganham outro significado? Por outras palavras, será que as girafas deram lugar aos camaleões? Durante as ditaduras, a população está alerta, tem conhecimento das girafas, do seu poder e controlo. Contudo, em democracias, aparentemente pacíficas e inclusivas, as girafas tomam outros disfarces, tornam-se camaleões. As anteriores polícias políticas desaparecem e dão lugar a vários agentes camuflados. Tornam-se mais fortes do que nunca. Apoiam-se nos seus disfarces, nas redes sociais e nos discursos populistas para lançarem o seu ódio e recrutarem militantes. Já não existe uma força estatal concentrada, mas uma generalizada por todo o território. Os camaleões crescem e multiplicam-se a uma velocidade astronómica, sem conseguirmos dar conta e sem lhes atribuirmos grande importância; é difícil identificá-los e travar o seu crescimento. E se continuarem a crescer, assistiremos, em breve, ao regresso das girafas na Europa.

A peça desenrola-se em Barcelona durante a ditadura franquista (1939-1975). A um casal que não consegue engravidar junta-se um rapaz sonhador, o melhor vendedor da cidade e um travesti noturno.

O casal que não consegue engravidar é constituído por uma mulher que vive imersa na bacia, e por um homem que trabalha para sustentar a família. Mete medo ver este quadro à nossa frente: a forma violenta e impositiva com que o homem toca na mulher, a manipulação, o orgulho, o controlo, o ciúme... Infelizmente este tipo de homens e de mentalidade ainda existem.  As mulheres ainda são vistas como "donas de casa" e, acima de tudo, como propriedade.

O rapaz sonhador é também uma personagem muito interessante. É uma criança grande, como são, por norma, as pessoas com algum tipo de doença mental. É como se o estado de perturbação nos permitisse conhecer melhor o mundo inconsciente destas pessoas, o fundo da alma de cada ser.  É ainda curioso que esta personagem vê a escrita como uma espécie de meio de salvação. A escrita aparece como uma expressão primária dos nossos pensamentos, dá-nos uma liberdade total de expressão.   

Numa época onde a publicidade e os slogans estão no seu auge, surge-nos esta figura do vendedor. Este é o típico empresário que perdeu a mulher, mas que afoga as mágoas no capitalismo. Este quer, desesperadamente, vender uma máquina de lavar. É muito cómico, não só porque reconhecemos este tipo de publicidade excessiva no nosso quotidiano, mas também porque o capitalismo tem uma certa graça. Este ridiculariza completamente o ser humano, tornando-o refém do mérito, do trabalho e do dinheiro.

O travesti noturno é uma personagem particularmente marcante. Este só se pode expressar durante a noite.  À noite podemos ser quem quisermos, porque não se vê. Todavia, a verdade é que as girafas não dormem. Deste modo, este revela um medo permanente de ser perseguido, preso ou morto. Para esta personagem, há uma espécie de esperança no fim da peça: uma vida nova em França.

É um espetáculo que nos deixa preocupados com o mundo e com o rumo que este está a tomar. Não tem a necessidade de nos chapar verdades na cara, o enredo faz isso por si só. 

O cenário dos anos 50 manteve-se durante todo o espetáculo. Porém, o espaço era usado de uma forma muito versátil e inteligente.

Relativamente à interpretação, esta foi muito boa. Cada personagem estava muito bem defendida e tinha um mundo interior muito rico. Mesmo na personagem aparentemente mais fútil, o vendedor, era visível a sua enorme tristeza interna. Para além disto, foi impressionante perceber como é que um ator que está tanto tempo mudo consegue atrair tanto a nossa atenção. Gostei também do momento de improvisação do travesti noturno; era muito difícil de perceber quando é que a improvisação acabava e o texto começava.

O espetáculo termina, mas as girafas continuam por aí. Pergunto-me: em que mundo é que queremos viver? Num mundo onde a mulher não tem saída? Onde o suicídio ou a loucura parecem a melhor solução? Onde ganhar o Euromilhões é a nossa única esperança? Esta história pode ter chegado ao seu fim, mas na vida real este pesadelo mal começou e, talvez, nunca acabará. Neste sentido, pergunto de novo: em que mundo é que queremos viver? Num mundo com ou sem girafas?


Fedra (Não é de Pedra)

De Martim Pedroso

No Teatro São Luiz


De 26 a 30 de março de 2024

Figura 23 Fedra (Não é de Pedra) - Teatro São Luiz (teatrosaoluiz.pt)


Fedra (Não é de Pedra) ou Fedra (Não é Fedro)?

Se Fedra tivesse sido Fedro teria havido tragédia? Esta pergunta é nos colocada, por outras palavras, perto do fim da peça. Confesso que me assusta um pouco a resposta... Se Fedra não tivesse sido mulher teria havido tragédia? Provavelmente não, se tivesse sido um rei de meia idade a seduzir a sua enteada princesa, os seus feitos teriam sido glorificados e ninguém se teria suicidado. A princesa em questão teria morrido de amores por ele e, por isso, não teria havido tragédia, mas sim um conto de fadas. Por outro lado, uma rainha de meia idade apaixonar-se pelo seu enteado jovem e príncipe, é considerado uma grande vergonha. É visto como um pecado tão horrível, uma atrocidade tal, que só poderia ter sido cometida por uma louca.  É aterrador perceber que a mulher tem uma série de rótulos à espera dela, desde o momento em que nasce até ao que morre.  É triste perceber que se Fedra tivesse sido homem não teria havido tragédia, teria havido, talvez, uma epopeia.

O espetáculo dialoga com várias Fedras: a de Eurípides, a de Séneca, a de Racine e a de Sarah Kane. No entanto, a história desta figura mitológica é comum e é, por si só, muito impactante. Aborda temas que não nos deixam indiferentes como o amor, o suicídio, o casamento, o poder, a loucura, a pressão social sobre a mulher... Este espetáculo proporciona-nos, em particular, uma reflexão muito bonita sobre o amor. É referido que o amor ardiloso não é o amor verdadeiro, uma vez que o amor verdadeiro é demasiado tresloucado para se conseguir disfarçar. As palavras saem antes de as conseguirmos medir ou filtrar. Convoca uma autenticidade que assusta muitas pessoas.

O espetáculo apresenta-nos uma versão atualizada desta tragédia: uma Fedra que não é de pedra, é da "Gen Z". Uma versão que não tem medo de estragar palavras, de dizer asneiras ou de utilizar expressões e comportamentos característicos desta geração. Conseguiram tornar este clássico grego acessivelmente engraçado. No entanto, por vezes, senti que era demais, senti-me ligeiramente constrangido. Parecia que algumas palavras não queriam ser proferidas em certos momentos, nem pelas personagens, nem pelos próprios atores.

O comentário pós-dramático, mais conhecido como coro, também seguia esta estética mais "cool". Além disto, era tudo explicado de modo a que não restassem dúvidas. A meu ver, tornava-se algo redundante, porém, reconheço que, para outras pessoas, este esclarecimento possa ter sido útil.

Para além disto, esta escolha artística mais atual tornou a própria abordagem aos deuses muito caricata. As divindades eram vistas de um ângulo muito imperfeito e, por isso, engraçado. Eram tudo o que uma rapariga de 13 anos poderia imaginar... São-nos apresentados como uma espécie de seres humanos com poderes, com tanta maturidade quanto nós. E o que é que nos diz que estes não são assim?

Trata-se de um espetáculo bastante direto. Talvez até direto demais, todavia, não é disso que precisamos atualmente? Com tanto "encher chouriços", é refrescante ouvir as coisas sem rodeios.

Fedra (Não é de Pedra) é um espetáculo de duas horas e um quarto, que passam sem darmos por isso. Gostando mais ou menos das decisões artísticas, isto é, desta conciliação entre as gerações mais novas e a antiguidade clássica, é impossível afirmar que este não é marcante. Prende-nos do início ao fim, pela sua peculiaridade e imprevisibilidade. É, sem dúvida, um espetáculo inesquecível. Ao sairmos do teatro, levamos um pouco do que vimos connosco: as inquietações, as provocações...

A maquilhagem era absolutamente hipnotizante. Os dourados, espalhados pela cara, convocavam o universo do Olimpo. Os figurinos também estavam dentro desta linha divina. Quer a maquilhagem, quer a roupa transcendiam-nos e constituíam uma personagem. Relativamente ao cenário, este era formado por uma espécie de colunas brancas que faziam lembrar o Parthenon de Atenas. Para além disto, de um ponto de vista mais simbólico, este reforçava a diferença entre Fedra e estas "estátuas do Parthenon". A solidez das colunas, a indestrutibilidade divina contrastava com a instabilidade emocional da rainha, com a fragilidade humana. No que diz respeito ao som, este era particularmente inquietante, evidenciava a tragédia. Por último, é relevante referir a utilização multimédia: eram projetados vídeos principalmente durante as mudanças de cena. Apesar de reconhecer que estes nos davam imagens fortes e interessantes, que nos ajudavam a entender a peça de uma forma mais carnal, não senti que acrescentasse muito à mesma.

A interpretação foi muito boa. Os atores conseguiam articular muito bem os momentos mais cómicos, de desconstrução e até de exagero com os momentos mais sérios.  Estes momentos mais "dramáticos", por serem emocionalmente tão impactantes, acentuavam os momentos de comédia e de desconstrução.

A Fedra é uma personagem que atravessa tempos e povos. É uma mulher que representa muitas mulheres e até a própria condição humana.  A Fedra não é de Pedra, tal como nenhuma mulher o é.  No entanto, se as mulheres não são de pedra, os homens também não. Ser de pedra é anular a nossa humanidade, é anular o que nos separa destes seres inanimados: a capacidade de sentir. E se, por sentir, Fedra é considerada louca, talvez todos o sejamos também. 


Retábulo

De Miguel Castro Caldas

No Teatro São Luiz e no CAL (Centro de Artes de Lisboa)


De 13 a 24 de março e de 26 a 29 de setembro de 2024, respetivamente

Figura 22 Retábulo | Teatro in Lisboa (timeout.pt)


Retábulo ou Portal Mágico? Um retábulo é uma caixa de madeira com o fundo pintado. Esta pintura, que se assemelha a uma paisagem, estimula a nossa imaginação. O retábulo que nos é apresentado neste espetáculo é, de certa forma, uma versão minimalista deste conceito; isto é, é feita uma espécie de corta-mato criativo, abolindo o fundo pintado e revelando o nada. É-nos somente apresentada uma porta que dá para o infinito. Afinal, para que é que serve o quadro? Este, a meu ver, até atrapalha o processo criativo, uma vez que condiciona a nossa imaginação. O nada contém em si uma liberdade muito maior, ilimitada. Não precisamos de um quadro para ver nem para entrar numa outra dimensão, os nossos olhos fazem isso sozinhos. 

Mas será que era preciso sequer uma porta? Não seria possível levar o minimalismo até ao seu extremo? Não será a porta do Teatro São Luiz, por si só, um retábulo? Afinal, esta é uma porta que dá para um mundo infinito de possibilidades...

Tudo começa com provocações. Uma atriz dirige-se à plateia e diz várias coisas como: "tu vais perceber", "tu não vais perceber", "tu talvez percebas". E pergunta, aparentemente, a uma das pessoas do público se esta pensa que vai ver. Rapidamente, percebemos que é uma das atrizes e o espetáculo desenrola-se numa espécie de meta teatro peculiar. No fim, a "apresentadora" é a apresentadora, a senhora do público é a senhora do público, o Armando é um ator e o marido da senhora do público nunca ali esteve.

Este espetáculo parte da peça: O Retábulo das Maravilhas de Miguel Cervantes de Saavedra. Uma peça sobre uma peça em que nada se passa. O Retábulo contém essa passividade, deixando o público num estado de confusão. Coloca-o num conflito interno entre admitir que nada se passa ou procurar desesperadamente sentidos para disfarçar/pavonear a sua intelectualidade.

É um espetáculo muito interessante, pois não se assemelha a nada do que tenha visto. O Retábulo foi um abrir de olhos para uma forma distinta de fazer/de pensar o teatro. Por outras palavras, foi uma autêntica lufada de ar fresco. Neste sentido, posso dizer que esta companhia voltou a surpreender-me.

Para além disto, é também um espetáculo muito cómico. No entanto, não se trata daquele cómico de rir até mais não. Trata-se de um cómico diferente, provocado, em parte, pelo meta teatro, mas também pelo estado "à rasca" do público. Desde o início até ao fim, que nos sentimos um pouco desorientados e com poucas certezas em relação ao que vemos. É um riso que resulta de um desconforto e de uma estranheza.

O cenário e a própria disposição do espaço eram muito convidativos. O palco consistia numa plataforma elevada em forma de passarela e a plateia estava colocada em torno do mesmo. Esta disposição, semelhante a uma arena, aliada aos frequentes comentários dirigidos ao público faziam-nos sentir parte de todo aquele jogo teatral. Relativamente à luz e ao som, estes também contribuíam para o aguçar deste clima místico.

A interpretação foi bastante boa. Estavam claramente definidos os diferentes registos que o espetáculo convocava:  o de apresentação (direto e mais próximo do público), o da meta teatralidade e o da imersão no jogo (a representação, no seu sentido mais convencional).

Perto do fim do espetáculo, percebemos que o marido da senhora do público nunca apareceu. Tanto esta como nós vimos para além do que lá estava. É uma ilusão que se cria e que, face às perguntas colocadas inicialmente, nos incitam a uma grande reflexão. O que é que é real e o que é que não é? O que é que vemos e o que é que não vemos? Quem diz que vê, isto é, quem pensa que vê tudo, não o faz por delírio. Fá-lo porque vê efetivamente muito e porque pensa que esse muito é o todo, que não há mais nada para além disso. Qual é então a alternativa? Admitirmos que nada vemos? Aceitarmos que somos todos uns cegos ignorantes? Tal como tudo na vida, penso que devemos sempre partir do que sabemos para conhecer o que desconhecemos. Mas o que sei eu? Só sei que nada vejo...

 

A Senhora de Dubuque

De Edward Albee

No Teatro da Trindade


De 29 de fevereiro a 21 de abril de 2024

Figura 21 A SENHORA DE DUBUQUE | Teatro da Trindade INATEL


A Senhora de Dubuque ou A Deusa Hécate?

Durante o espetáculo, perguntei-me várias vezes: quem é a Senhora de Dubuque? Esta figura misteriosa, que se faz passar por mãe de uma das personagens, deixou-me bastante intrigado. Não tendo tido oportunidade de ler a folha de sala, esperei, como bom espectador que sou, ansiosamente pela resposta (como se a literalidade, a lógica, fossem a única opção). Reconheço, porém, que este comportamento não foi totalmente estranho, uma vez que a maior parte da peça se encontra num registo relativamente próximo do quotidiano. Mas quem era então esta Senhora de Dubuque? Na folha de sala é apresentada uma possível resposta para esta pergunta: a Deusa Hécate, uma deusa grega que ajuda a encontrar o caminho para a morte. A ideia que temos da morte é tão horrenda, é bonito pensarmos nela de um modo mais reconfortante. Acreditando neste cenário mais aconchegante, pergunto-me o que será melhor: sermos lentamente aliciados para a fatalidade ou saltarmos inesperadamente, um dia, diretamente para os braços dela, sem despedidas, sem ninguém a expulsá-la de casa por nós? Concluo que a morte é muito cruel, no entanto, é reconfortante saber que esta pode ser somente uma Senhora de Dubuque, uma figura que nos recebe, que nos abraça pouco a pouco.

Este espetáculo inicia-se com um jogo entre amigos, numa noite aparentemente tranquila e divertida. Contudo, com o desenrolar do mesmo, vão emergindo problemas e discussões que colocam esta peça num lugar indeterminado entre a tragédia e a comédia.

Pessoalmente, não conhecia a peça, contudo fiquei fascinado. Esta desnuda as relações humanas e, por vezes, de uma forma muito crua. Em vários momentos, são verbalizados comportamentos e pensamentos socialmente condenáveis. Coisas que pensamos e que queremos fazer, mas que são "mal vistas". A Senhora de Dubuque recorda-nos de que o teatro também tem este papel de trazer o que há de mais humano e de proibido ao de cima. Todavia, esta liberdade não é totalmente revolucionária, uma vez que estes pensamentos antissociais eram, maioritariamente, verbalizados pela Ju. (Uma personagem que está a lutar contra o cancro). Esta funciona, assim, como uma espécie de bode expiatório: afinal, de que é que serve a uma pessoa que está a morrer ser socialmente aceitável?  Para além disto, a peça expõe vários estereótipos: o bêbado javardo, a morena ou loira burra, " a tia de Cascais", os brancos racistas... Porém, a caricatura não se exerce através da ideia do boneco, da representação, mas sim, maioritariamente, através da linguagem. Há certos comentários que, mesmo em contexto teatral, são difíceis de ouvir, que sensibilizam e chocam o espectador. Neste sentido, há uma grande ironia que incita o público à reflexão.  Aliás, um dos aspetos mais interessantes é que as próprias personagens têm consciência do estereótipo que representam, e verbalizam-no. Por fim, aborda a questão das doenças terminais, não só da perspetiva de quem sofre, da vítima, mas também da dos familiares e amigos. Percebemos que a dor para os doentes é dupla: física e mental, mas será que podemos comparar dores? Os familiares também se encontram numa dor extrema por verem quem amam morrer, sem poderem fazer nada. Será então possível medir dores? Esta é uma das questões que nos é lançada e que nos deixa um pouco desconcertados. Como é que se compara algo intransmissível? Na minha opinião, cada ser humano é único e, por isso, sente de maneira diferente. Não se trata de algo matemático, mas sim de algo subjetivo e incansável. Infelizmente/felizmente nunca conseguiremos colocar-nos completamente na pele de outra pessoa.

Quando a cortina abriu e o espetáculo começou, tive uma sensação ligeiramente diferente da habitual. Isto é, não senti que estava a assistir ao início de uma história, mas sim ao seu desenvolvimento. Parecia que aquela realidade já estava a acontecer, há algum tempo, longe dos nossos olhos. Era como se estivesse em casa a fazer "zapping" nos canais de televisão e tivesse encontrado um filme que já ia a meio. Foi a primeira vez que vi isto em teatro e confesso que me senti especialmente espectador nesse momento.

Os espectadores ocupam, contudo, um lugar ligeiramente diferente neste espetáculo. Sentimo-nos testemunhas de todo aquele enredo, mas de um modo diferente da maior parte das peças. Nesta, as personagens falam algumas vezes diretamente para nós, convertendo-nos numa espécie de personagem silenciosa. É como se fossemos uma terceira personagem com uma perspetiva exterior à história e na qual não podemos intervir. E é esta passividade que mexe connosco: faz-nos sentir impotentes em relação ao enredo e à própria vida.

É, sem dúvida, um espetáculo agridoce. É uma comédia que, por vezes, não tem graça nenhuma. Ou, por outras palavras, o que chamamos no teatro de tragicomédia: nuns momentos damos por nós a rir, e noutros com um nó na garganta.  Além disto, está claramente próxima da estética do absurdo. Isto deve-se especialmente ao enredo, a esta figura mística a que se atribuiu o nome de Senhora de Dubuque. 

O cenário é sempre o mesmo durante toda a peça: é o interior de uma casa recente de pessoas de classe média. É um bom exemplo de como não é preciso haver uma mudança de espaço para a história se desenrolar, isto é, para os problemas surgirem e a vida acontecer. O som e luz eram bastante coerentes com o cenário. Os figurinos também iam de encontro a esta linha: a algo mais próximo da realidade, e atual. Porém, a roupa da Senhora de Dubuque e a roupa final de Ju contrastavam com esta tendência. A personagem misteriosa usava um grande vestido preto, que me fez suspeitar se esta figura não seria uma personificação da morte.  Quanto a Ju, esta aparece, no fim da peça, completamente derrotada pela doença, vestida de branco. É precisamente este contraste entre figurinos mais quotidianos e figurinos mais metafóricos que os torna tão interessantes.

Relativamente à interpretação, penso que foi excelente.  Havia uma clara consciência do peso das palavras e dos tempos de comédia. Para além disso, é de realçar os momentos em que os atores falavam diretamente para o público. Durante esse tempo, os restantes atores que estavam em cena congelavam. Porém, considero que o interessante não era o famoso efeito de "freeze", mas sim a simultaneidade e a destreza com que congelavam e descongelavam. Era como se se tivesse pausado um filme e, posteriormente, carregado no comando: tudo continuava como se nada se tivesse passado. Por fim, penso que os atores trouxeram para cena o essencial do teatro: a humanidade. Mesmo as personagens mais estereotipadas não continham julgamento sobre si mesmas, viviam pura e simplesmente. E se não é para vermos, celebrarmos e pensarmos a vida, porque é que vamos ao teatro?

O espetáculo termina e algumas questões ficam a ecoar na minha cabeça: quem sou eu? Sou o resultado de genes combinados? Sou o que a sociedade diz que sou? Sou os meus pais, sou os meus antepassados? Sou os que mais amo? Quem somos sem eles? Quem somos? Eu penso que ninguém tem uma resposta para estas perguntas, no entanto acredito que o objetivo também não é esse. Mais do que obter respostas para tudo, considero que o importante é que nos continuemos a questionar sobre estas coisas. Durante a nossa vida, não nos devemos conformar com certezas, nem perder tempo com o desespero de respostas. O importante é continuar a perguntar, porque continuar a perguntar é continuar a pensar. E continuar a pensar é continuar a existir, como diziam os antigos. E o que é o teatro se não uma continuação da nossa existência?


Calderón

De Pier Paolo Pasolini

No Teatro São Luiz


1 e 2 de março de 2024

Figura 20 Calderón - Teatro São Luiz (teatrosaoluiz.pt)


"O maior crime que o homem cometeu foi o de ter nascido". Uma enorme fachada vermelha cai sobre o palco do Teatro São Luiz e é isto que lemos. É impossível ficar indiferente.

Calderón de Pier Paolo Pasolini tem como inspiração a peça: A Vida É Sonho de Pedro Calderón de La Barca. No entanto, o tempo, o espaço e o enredo são relativamente distintos. Calderón passa-se em 1967 na Espanha franquista. Rosaura, a personagem principal, acorda três vezes na peça sem saber nada da sua vida anterior, sem qualquer tipo de memória. É um espetáculo que utiliza o mecanismo da repetição e da ilusão para nos apresentar três possibilidades de vida diferentes. A sua condição social varia: inicialmente pertence à classe alta (aristocrata), posteriormente à classe baixa (proletária) e, por fim, à classe média (burguesa). O espetáculo joga, desta forma, com a realidade e o sonho.

Será que a personagem enlouqueceu ou somos nós os loucos? Foi tudo um sonho? Qual destas vidas é a verdadeira? É possível Rosaura ter vivido as três? Assistir à história da personagem a ser reescrita deixa-nos algo confusos e coloca-nos num papel um pouco exasperante. Tentamos desesperadamente encontrar a realidade, perceber o que de facto aconteceu. Porém, a peça não nos dá factos, apresenta-nos apenas possibilidades. E o que são os sonhos senão um conjunto de vidas possíveis? Esta é, deste modo, uma peça de sonhos. Fez-me lembrar o universo da Alice do País das Maravilhas.  Todavia, os sonhos que observamos aproximam-se muito da realidade. O que me leva a questionar se não será a vida também um grande sonho. Afinal, o que é que me garante que estou acordado e que não estou somente a viver uma daquelas três possibilidades de vida? Posso estar apenas no primeiro ato do meu espetáculo...   

A questão da ilusão também se torna bastante evidente com a reconstrução viva do quadro Las Meninas de Velázquez. Este é, por si só, um quadro que nos coloca numa posição complicada, não sabemos se somos nós a observá-lo ou se é este que nos observa. Ao adicionarmos personagens a esta equação tudo se torna mais confuso e ilusório. Para além disto, clarifica a essência desta peça: fazer de quadro. Isto é, os atores, ao interpretá-la, estão a colocar-se numa posição semelhante à das personagens de Las Meninas: observam o mundo, a vida e o poder. E deixam os objetos da sua atenção, o público, numa eterna inquietação.

Contudo, mais do que propor sonhos e instalar inquietações, esta é uma peça sobre poder. Sobre a forma como este se instala e opera. É um espetáculo complexo que nos mostra que o poder nos torna reféns dos sonhos, que nos obriga a refugiar neles. Os sonhos não nos restringem, dão-nos liberdade total. Na vida as coisas são consideravelmente diferentes. A nossa liberdade não é garantida, esta depende das condições sociais, económicas, religiosas e políticas em que vivemos. Neste sentido, não seria espetacular se a nossa vida fosse um grande sonho? Será essa a única forma de escaparmos à lógica do poder?

Gostei particularmente do facto da peça ter um porta-voz, uma espécie de narrador que, em 3 ou 4 momentos do espetáculo, se dirige à plateia para transmitir comentários ou esclarecimentos por parte do autor. É muito cómico e faz-nos sentir mais próximos do pensamento de Pasolini.

Relativamente ao cenário, este contribuía para o mecanismo de ilusão referido. Desde uma porta que parecia dar para um espaço infinito (para o céu) a uma cama que parecia deslocar-se sozinha no palco.

O som era insuportável: fazia doer os ouvidos de tal forma que dava vontade de sair da sala. Remeteu-me para o universo dos sonhos febris, dos pesadelos. A luz também ia de encontro a este imaginário, foram inclusivamente utilizadas luzes estroboscópicas. Deste modo, ambos convocavam um ambiente poderoso e asfixiante.

A interpretação foi muito boa. Penso que foi das vezes mais simples de "avaliar", uma vez que podia ignorar as palavras. Devido à barreira linguística, conseguia facilmente desviar a atenção do sentido semântico e focar-me na interpretação. Existiam, efetivamente, legendas, no entanto tinha a liberdade de poder escolher ouvir as sonoridades e observar os corpos dos atores em cena. E, surpreendentemente, sem perceber linguisticamente nada, conseguia perceber o que se estava a passar. Para além disto, confesso que sou apaixonado pela língua italiana, daí também esta vontade de ouvi-la sem nenhum esforço adicional. 

O espetáculo é atravessado por uma grande carga política. Para os que estavam céticos em relação a isso, o fim não deixa margem para dúvidas. É referido que os sonhos se podem facilmente tornar realidade, como por exemplo, Segismundo tornar-se rei. No entanto, os operários serem livres é "um sonho, nada mais que um sonho". Deste modo, o "E viveram felizes para sempre..." não se dá e talvez nunca se dará. Esta falta de esperança numa revolução, numa mudança da situação atual do mundo deixa o público com o coração nas mãos. O final da peça é, assim, o despertar para uma realidade dura e muito pouco sonhadora.

Depois das Zebras

De Pedro Gil

No Teatro São Luiz


De 15 de fevereiro a 25 de fevereiro de 2024

Figura 19 Depois das Zebras | (agendalx.pt)


O que é que acontece depois do Depois das Zebras? O que é que acontece depois do teatro, depois da ficção?  Saímos da sala e tudo regressa ao normal? Ou propomos um novo normal? Depois de um assalto ao nosso espírito, será que este finalmente acorda? Será que conseguimos concretizar um mundo onde todos somos iguais, onde todos temos os mesmos direitos? 

Estas foram algumas perguntas que me ficaram na cabeça, após o fim do espetáculo. Em relação à última questão, penso que só saberemos se tentarmos, como aqueles atores tentaram em cima do palco. Este é um espetáculo que nos convida a fazer a transição entre a ficção e a realidade. Dá-nos esperança de que é possível fazer esta mudança, de que é possível uma sociedade igualitária. É uma ideia que parece algo utópica, todavia, esta companhia mostrou-nos que a utopia está à distância de uma tentativa. Afinal, se ali funcionou, porque é que não funcionará na vida real? 

Depois das Zebras é uma peça de Pedro Gil. De uma forma resumida, esta é sobre um grupo de assaltantes que assalta um resort no Quénia. Estes distinguem-se por usarem máscaras de zebras. Durante vários dias, com a polícia a cercá-los, fazem dos hóspedes e dos empregados reféns. Neste sentido, durante este período, todos são tratados da mesma forma, vivem enquanto iguais. Quando o assalto termina, alguns hóspedes e empregados defendem um novo normal, onde ambos fazem algumas tarefas, descansam e convivem uns com os outros.  Outros hóspedes e empregados, desejam o regresso à normalidade, creem que todos enlouqueceram.

É uma peça que me pareceu tanto uma ode ao comunismo, como uma ode à igualdade. Talvez tenha sido um pouco dos dois. Não obstante, considero que mais do que defender uma ideologia política, defende os direitos humanos, opondo-se ao racismo. É um espetáculo que se rege, se calhar sem se aperceber, pelo lema da revolução francesa: igualdade, liberdade e fraternidade.

Considero ainda que este espetáculo, para além de ser uma metáfora sobre a questão da discriminação racial, é um alerta para a necessidade de continuarmos esta luta.  A conquista de um novo normal, do "novo serviço", infelizmente, tem perna curta: as divisões, a discriminação, as hierarquias renascem num piscar de olhos. Este apelo à revolta torna-se particularmente evidente no fim da peça, quando uma das empregadas, após encher o copo do hóspede, enche o seu copo, senta-se e bebe.  Nesse momento, vi Rosa Parks a recusar ceder o seu assento no autocarro...   

É também interessante perceber que é em situações extraordinárias que surgem mudanças extraordinárias. É nesse tipo de situações peculiares que estamos abertos a qualquer coisa. No entanto, estas não têm de nos colocar em risco de vida para ser extraordinárias, têm apenas de fugir ao normal, ao nosso quotidiano.  Penso que o teatro faz parte deste tipo de situações. Escolher deslocarmo-nos ao centro da cidade, em horário pós-laboral, pagar bilhete e ficar fechado numa sala durante um tempo considerável, pressupõe uma disponibilidade para pelo menos se ouvir o que o outro tem para dizer, para a mudança.

É um espetáculo muito cómico, original e leve. Contudo esta leveza, esconde uma reflexão profunda que recomendo vivamente.

Esta peça fez-me pensar ainda sobre o poder da ficção. A ficção é uma ferramenta riquíssima, pois dá-nos a possibilidade de experimentar, sem grandes consequências. Permite-nos imaginar coisas que: ou nunca aconteceram ou podem vir a acontecer. Permite-nos viver nesses cenários hipotéticos, por um período de tempo limitado, e ver se funcionam. A realidade é muito mais cruel: não há grande espaço para experimentar nem para falhar. O mundo da ficção é um mundo em que tudo é possível e sem limites, é bastante mais aliciante.

Até onde é que vai a narrativa? Foi outra pergunta que me ficou do espetáculo.  As cenas, por si só, já são narrativas, uma vez que representar é contar uma história a alguém. Porém, era interessante como esta questão emergia. Havia momentos que eram explicitamente narrativos: os atores falavam diretamente para o público sobre o que se tinha passado ou sobre o que se estava a passar em cena. Havia outros em que as cenas decorriam de um modo mais convencional. E havia outros momentos, durante essas cenas mais convencionais, em que os atores intercalavam entre olhar entre eles e olhar para nós. E foi isso que me intrigou.

A multiplicidade de línguas foi uma característica que apreciei bastante. Contudo, as línguas estavam presentes de uma forma pouco habitual.  Os atores utilizavam uma técnica que partia do Grammelot. Ou seja, estes não diziam as línguas, representavam as suas sonoridades, inventando outras línguas. Assemelha-se ao universo das línguas inventadas das crianças. É uma técnica, da qual não tinha conhecimento, mas que é muito interessante, uma vez que se dirige aos nossos sentidos. Várias vezes tive vontade de fechar os olhos e de ficar a ouvir os sons, sem prestar atenção às legendas. Afinal, para quê entender, quando podemos sentir?

O cenário era muito bonito: tinha árvores, girafas, aves e cores que constituem a paisagem africana como vermelhos, azuis esverdeados, amarelos...

Relativamente aos atores, penso que fizeram um excelente trabalho. Os tempos, os olhares e as reações estavam muito bem medidos. Para além disto, estes conseguiam mudar de personagens inúmeras vezes sem comprometer o entendimento: quem é que eles eram e a sua opinião sobre o "novo serviço". As cenas eram curtas, cómicas e muito bem executadas. Pareciam trailers, deixavam-nos sempre a desejar mais.

O espetáculo termina, e questiono-me: ter-se-á a ficção tornado realidade? Passo a explicar: não serão os atores também zebras? Não será esse o seu papel? Não são estes que nos mantêm fechados numa sala, durante uma hora e quarenta e cinco minutos, condenados a ouvir o que têm para nos dizer? Nesse espaço e durante esse tempo, somos todos iguais, estamos todos na mesma posição, temos todos o mesmo estatuto: o de espectador. Neste sentido, vivo então, atualmente, o quê? O Depois das Zebras ou depois do Depois das Zebras? Talvez viva os dois.

De Passagem

De Luísa Costa Gomes

No Teatro do Bairro e nos Recreios da Amadora


De 10 de janeiro a 4 de fevereiro e dia 25 de fevereiro de 2024, respetivamente

Figura 18 De passagem | Teatro in Lisboa (timeout.pt)


De Passagem ou De Paisagem? Antes de assistir ao espetáculo, vários familiares meus me perguntaram o nome da peça que ia ver e eu, sempre com a maior confiança do mundo, respondia: De Paisagem. Rapidamente percebi que isto não era um erro estapafúrdio, que não era teimosia minha, afinal o próprio cartaz da peça retrata uma paisagem. Neste sentido, surgiu uma outra pergunta: porque é que então se chama De Passagem? Uma paisagem é uma imagem formada por elementos naturais que se apresenta ao nosso olhar durante um determinado momento ou instante. Cada vez que a observamos, vemos coisas diferentes, pois está sempre em constante mutação. Olhar a mesma paisagem ao meio dia e à meia noite são experiências completamente distintas. A paisagem encontra-se, assim, sempre de passagem, é única.

De Passagem é uma peça de Luísa Costa Gomes. Pessoalmente não conhecia este texto, mas fiquei fascinado. Gostei particularmente da forma como a natureza é abordada, é um tema tão usado, mas foi explorado de um modo completamente diferente. O texto tanto nos faz rir, como nos dá prazer de ouvir, por ser tão bonito. A peça apresenta uma comicidade que não advém da situação ou do carácter das personagens, mas da linguagem. Trata-se de uma comicidade poética.

É um espetáculo engraçado e tranquilo.  Espelha a pacata vida rural, contrastando com o bulício da vida citadina, a que pelo menos eu estou habituado. Temos a sensação de que tudo se passa durante uma longa tarde de verão. Durante aquelas tardes, onde se podem fazer inúmeras sestas até ao jantar...

Recordou-me também um pouco as peças clássicas gregas, uma vez que as cenas de tragédia nunca são representadas. Sabemos apenas que aconteceram através de relatos.

O cenário era muito bonito. Recriava quase o mundo rural à nossa frente. Tinha um banco de jardim, uma casa de campo, árvores, folhas caídas, da cor de outono, espalhadas pelo chão... A paisagem, porém, que constituía o cenário, parecia pintada. Parecia-me impressionista, era como se congelasse no tempo as sensações, o que está de passagem. 

Os figurinos, na minha opinião, aumentavam a comicidade do espetáculo, visto que condiziam com as personagens.

Relativamente aos atores, gostei muito do trabalho de construção de personagem: desde os homens "queques" da aldeia, da mãe "cool" do século vinte um (que fala literalmente para o boneco) ao velho que não gosta do barulho dos animais e ao rapaz que quer ver o mundo. Estas figuras que parecem quase caricaturas, são assustadoramente reais: espelham pessoas com as quais me cruzo na rua...  O trabalho de movimento também estava bastante interessante.  Senti que foi trabalhado ao pormenor, gostei do detalhe dos "queques" se sentarem e cruzarem a perna sempre ao mesmo tempo. 

O espetáculo toca num tema muito relevante: na questão da obrigatoriedade das trocas. Na peça, o rapaz recusa-se a aceitar um caderno como presente, pois afirma que não tem nada para dar em troca. Isto fez-me pensar que, quando se recebe uma prenda há uma obrigatoriedade implícita de a retribuir no futuro. Dar é receber, marca o início de um sistema de trocas. Nós estamos há milhares de anos presos a este sistema: à economia.

Contudo, penso que este espetáculo não é sobre economia. É sobre a vida, sobre estarmos de passagem, sobre o nada que acontece nesse instante indeterminado. Faz lembrar a peça: À Espera de Godot de Samuel Beckett. A vida não é mais do que um estar de passagem, do que uma transição entre os nadas: entre o início e o fim, entre a vida e a morte.

Noite de Reis: Versão Celebrativa

De William Shakespeare

No Museu da Marioneta


De 6 de janeiro a 5 de fevereiro de 2024

Figura 17 Noite de Reis: Versão Celebrativa | My Site (filhodomeio.com)


Noite de Reis ou Noite Delus?

Noite de Reis: Versão Celebrativa foi o primeiro espetáculo em Portugal a ser feito com dois elencos: um exclusivamente masculino e um exclusivamente feminino. Assisti às duas versões do espetáculo e posso dizer que são muito distintas. Foi muito interessante perceber como é que, tratando-se da mesma peça, do mesmo texto, do mesmo cenário... podem ser tão diferentes. No entanto, a decisão de fazer esta peça com dois elencos não foi inocente. Contém uma certa ironia, afinal dá ao público, à sociedade portuguesa exatamente o que esta sempre quis: dois géneros, um mundo cor de rosa e azul. Ora isto é ainda mais irónico, tendo em conta que Violeta, uma das personagens principais, é uma mulher que se disfarça de homem. Neste sentido, a própria peça sempre deteve este estilo queer, esta encenação apenas deu foco a esta característica. Uma característica que provavelmente sempre nos passou ao lado, por vivermos numa sociedade tão conservadora, tão binária, tão cor de rosa e azul. Deste modo, trata-se de um espetáculo algo provocador. Este mostra-nos que os conceitos de género e de sexo ainda são, infelizmente, considerados sinónimos. Enquanto que o sexo é biológico, o género é um conceito socialmente construído. A sociedade atribuiu a cada sexo uma série de comportamentos típicos, que constituem o género. Quando os nossos comportamentos fogem aos dois géneros pré-estabelecidos socialmente, as pessoas são excluídas e marginalizadas. Violeta, ao enganar todos relativamente ao seu género, demonstra como o mesmo não passa de um conceito social. Propõe uma fluidez de género.  Esta questão é especialmente evidenciada neste espetáculo: vemos homens a fazer de mulheres e mulheres a fazer de homens.  E fazem-no expondo estereótipos femininos e masculinos. Desta forma, deixam bastante claro que esta peça não é uma tempestade amorosa, mas uma tempestade de géneros. 

Esta não foi a primeira peça que vi da companhia Filho do Meio e, mais uma vez, não só não me desiludiu, como superou as minhas expectativas. Posso dizer, sem sombra de dúvidas, que sabem fazer Shakespeare. Conseguem trazer o essencial de cada peça ao de cima e o essencial, o simples é sempre o mais difícil de transmitir.  Para além disto, também gosto muito do facto do encenador, antes do início do espetáculo, vir falar com o público, torna tudo muito mais humano. Esta é a única companhia que vi a fazer isto e, na minha opinião, é muito importante, pois dá-nos acesso a uma pequena parte do processo de criação do espetáculo. Vejo inúmeras peças de teatro e, muitas das vezes, sinto que coloco os atores e os encenadores num papel bastante ingrato, afinal só estou a ver o resultado de um processo que desconheço. Vejo o que naquele dia e àquela hora acontecer, sem saber muito mais do que algumas reflexões da folha de sala. Era interessante que isto acontecesse noutras peças: partilhar processos.

É um espetáculo muito divertido, ri-me do início ao fim, pude relaxar e disfrutar. Não estive confuso nem indignado, nem com conflitos existenciais, estive presente a assistir àquela história que, vários séculos depois, continua a fazer tantas pessoas rir.

A peça de Shakespeare é, por si só, muito cómica. É considerada por muitos a comédia mais perfeita do mesmo. Contém a dose certa de trocas de entidade, de planos maldosos e mal entendidos para deixar o público em gargalhadas.

Relativamente ao cenário, este era simples: consistia em 4 mesas e 4 cadeiras. É muito curioso como não é preciso muito para se fazer coisas interessantes. Estes souberam aproveitar o espaço que tinham, utilizando-o de forma inteligente.  Também apreciei particularmente a música isabelina que entrava durante as mudanças de cena, foi um detalhe cómico.  Os figurinos eram extremamente shakespearianos, desde as golas isabelinas às meias amarelas.

A interpretação estava excelente. Os atores tornaram o texto muito acessível, tinha ritmo, deixou de ser somente poético e tornou-se vivo, palpável e atual. Conseguia ver as adolescentes dramáticas, os bêbados javardos, o desejo sexual e as paixões desmedidas. No que diz respeito ao trabalho do corpo e do movimento, este estava absolutamente extraordinário. Cada gesto era cuidado e simbólico. Os atores deslizavam pelo espaço simbolicamente e literalmente.

Os dois elencos tinham, no entanto, interpretações muito distintas. Enquanto que o elenco masculino exagerava o estereótipo feminino até ao seu máximo,  o elenco feminino fazia o mesmo com o estereótipo masculino. Todavia, os dois complementam-se estranhamente: tornam algumas cenas e personagens mais claras. 

Por último, considero que é muito triste ainda respirarmos, de uma forma geral, este oxigénio cor de rosa e azul.  Quando assisti ao espetáculo do elenco feminino, senti que o meu cérebro inconscientemente estranhava ver as mulheres a fazerem aquele tipo de comportamentos exagerados e excêntricos. Contudo, com o elenco masculino isso nem sequer foi uma questão, era somente cómico. Independente do meu género, isto é assustador e demonstra a necessidade de se continuarem a fazer este tipo de peças.  É urgente despertar esta consciência e mudar a mentalidade social. Porém, penso que isso só irá acontecer se primeiro desmistificarmos o conceito de género. E nada melhor do que fazê-lo por meio de risos e de gargalhadas, tal e qual como esta companhia propôs.

À Procura de Chaplin

De Rita Calçada Bastos

No Teatro São Luiz


De 24 a 28 de janeiro de 2024

 Figura 16 youtube.com/watch?v=3vXTI6UL200


À PROCURA DE CHAPLIN ou À NOSSA PROCURA? Durante este espetáculo, encontramos, várias vezes, Charlie Chaplin, mas será que alguma vez nos encontramos? Na minha opinião, ao vermos esta personagem é impossível não nos revermos nela. Afinal, onde é que podemos encontrar Chaplin? Na rua, num cruzeiro, num olhar apaixonado...Charlie Chaplin era capaz de condensar em pequenos gestos a humanidade. Nesta peça, a comédia está presente em cada respiração. Porém, não se trata de uma comédia de consumir e deitar fora, mas de uma comédia que ecoa a existência humana. As personagens que vemos à nossa frente são pessoas, que, através da caracterização e do exagero, fazem um grande zoom da realidade, expondo o ridículo do ser humano.  E nós, ao sermos confrontados com ele, é impossível não nos identificarmos e rirmos.  E não há nada tão libertador como rirmo-nos de nós próprios...

Após SE EU FOSSE NINA e EU SOU CLARICE, À PROCURA DE CHAPLIN completa a trilogia de Rita Calçada Bastos.

É um espetáculo muito divertido e cativante, onde o tempo passa a voar... Remeteu-me para o universo dos filmes mudos: o gesto é limpo e muito bem estruturado. Nesta peça, o corpo está tão bem trabalhado que nem senti necessidade do uso da palavra, no entanto, quando esta surgia tinha um papel muito cómico e cuidado. 

Penso também que o tema é, por si só, muito rico.  O universo de Chaplin é um universo que me parece algo finito e que me intriga particularmente. Senti que me encontrei a meio caminho com esta personagem. É impressionante como o chapéu juntamente com o trabalho de corpo e do movimento conseguem reconstituir esta figura à nossa frente.

Mais do que compreender racionalmente tudo o que se passou, levo deste espetáculo sensações: de leveza, de encontro e desencontro, de inquietação, de nervosismo apaixonado e de diversão. 

Senti que estava tudo interligado: a interpretação, o som, o cenário e a luz. Agradou-me também o uso das projeções: eram projetadas frases, sendo que, muitas delas, eram da Bíblia. Fez-me lembrar um pouco os oráculos gregos, visto que nos apresentavam um conjunto de enigmas sobre os quais éramos convidados a refletir e a resolver. Dei por mim, em vários momentos, a pensar: mas porquê esta frase? Gosto de ter essa sensação, enquanto espectador, de que me estão a tirar constantemente o tapete dos pés.

No que diz respeito à representação, foi uma lufada de ar fresco. Proporcionaram-nos um universo Clown absolutamente extraordinário. Os tempos, os olhares, os gestos e a palavra estavam muito bem articulados e medidos. Gostei ainda do uso das várias línguas, tornou mais claro esta ideia de humanidade.  Isto é, não é preciso entender nenhuma língua para perceber se uma pessoa é desajeitada ou se está perdidamente apaixonada. A linguagem humana é transversal.

"I´M ALONE, ALONE, ALONE!" foi a frase que mais me marcou. Esta é dita por Charlie Chaplin, quase no fim da peça, como reação ao facto de não querer morrer. Este só aceita morrer, quando percebe que não está sozinho, que se tem a si mesmo. Isto impactou-me, fez-me pensar que este medo que todos nós temos de morrer sozinhos constituiu um pânico maior do que a morte. Neste sentido, acredito, como referi inicialmente, que espetáculo não é sobre procurarmos Chaplin, é sobre procurarmos a nossa pessoa. É sobre encontrarmos em nós mesmos vida. É sobre partirmos nesta busca incessante pelo nosso "eu", pela nossa identidade, para um dia morrermos na nossa companhia. Procurar Chaplin talvez seja, assim, procurar a nossa boia de salvação, perdidos neste mar tão violento, que é a vida.

O Meu Amigo H.

Adaptação de Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu e Ricardo Braun.

Na Culturgest


De 18 a 20 de janeiro de 2024

 Figura 15 Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu | Culturgest


O espetáculo tem como título: O Meu Amigo H., mas podia ser "O Meu Amigo S." ou  "O Meu Amigo M." ou até "O Meu Amigo F.". Mas porquê cingir uma personalidade a uma letra? Porque não dizer o nome? A meu ver, este não é um espetáculo de narrativas.  E os nomes, quer queiramos quer não, remetem, não para a pessoa em particular, mas para a sua vida, para a sua narrativa. Não interessa se se trata de Hitler, de Salazar, de Mussolini ou de Franco.  A relevância não reside nos nomes, mas no que eles representam: o fascismo, a violência, o poder, a morte e a força da ignorância.  O H, para mim, assume esta função de lembrança, de referência ao passado alemão. Deixando, desta forma, a porta aberta para se pensar o passado português, o italiano, o espanhol...e refletir sobre o mundo na atualidade.

Este espetáculo baseia-se na peça: My Friend Hitler, do escritor japonês Yukio Mishima. Ambos têm, embora divergindo nos nomes, apenas quatro personagens: o H., o capitalista, o sindicalista e o militar. A peça e o espetáculo são políticos: dão-nos uma visão exclusiva da ascensão de um ditador.

É um espetáculo que aborda temas urgentes. O fascismo é particularmente urgente. Hoje vemos cada vez mais em Portugal e no estrangeiro partidos extremistas a ascenderem ao poder. Mas porquê é que isto acontece? Este espetáculo fez-me perceber o motivo: o conteúdo dos discursos e a visibilidade. Os discursos políticos só funcionam pela sua falta de conteúdo, pela sua ignorância. São repletos de meias verdades, de  generalizações, de irracionalidade e de emoções extremadas. Lançam ideias radicais e ilógicas, mas que, por serem ditas com confiança e paixão/ódio, as pessoas assimilam sem pensar.   A ignorância, infelizmente, é como uma epidemia, espalha-se depressa. Era bom que o conhecimento fosse igualmente contagioso. O conhecimento dá trabalho, exige de nós... a ignorância, por outro lado, é passiva. Não é preciso esforço nenhum, ela vai e volta sem avisar. Para além disto, não é de menosprezar a questão da visibilidade. Se estes discursos não fossem feitos para praças cheias ou não tivessem tanta exposição mediática... teriam muito menos adesão.

 «Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir» (Salgueiro Maia).

É também um espetáculo transparente. Isto é, não tem vergonha de mostrar que é um espetáculo: estão em cena as pessoas que trabalham com a câmara e com o som. É interessante, pois cria uma ponte horripilante entre a realidade e a ficção.

O espetáculo é ainda desconcertante, o público não tem "a papinha feita". Não nos é permitido estar sentadinhos nos nossos lugares, a deleitar-nos com o espetáculo. Este deixa-nos inquietos, com alguma dificuldade em pensar e obriga-nos a raciocinar.

O Meu Amigo H. vive muito dos efeitos audiovisuais. Há uma simultaneidade muito bem construída, pensada e executada entre o que se apresenta diretamente à frente dos nossos olhos (os atores em palco) e o vídeo da cena transmitido no momento. Há uma fusão entre o mundo do teatro e do cinema. A minha opinião dividiu-se neste tópico. Por um lado, considero que o uso do audiovisual funcionou muito bem no início, durante o discurso político. Contudo, a certa altura deixou de me fazer muito sentido, parecia que estava a ver um filme e não uma peça de teatro. A meu ver, o palco dificilmente consegue competir com o grande ecrã. Este é maior e apresenta-nos tudo num plano mais próximo e mais apelativo aos nossos olhos. Por outro lado, penso que estes efeitos visuais e sonoros criavam um ambiente distópico e meio alucinado. Sendo, deste modo, coerente com o próprio texto: sombrio e desconexo.  Propõe uma atmosfera género 1984, um universo alternativo onde o pior acontece. O uso da câmara era, particularmente, inteligente, pois tornava tudo mais alucinado. Parecia que estávamos a ver tudo de uma perspetiva surreal, drogada. Tudo isto sobrepunha-se, porém, aos atores. No entanto, penso que era precisamente esse o objetivo: tornar os atores, a humanidade pequena... face aos sons, face aos ecrãs, face à propaganda.

Gostei ainda do cenário, era relativamente simples e funcionava. O microfone pendurado durante os discursos políticos fazia lembrar um ringue de boxe. O que não deixa de ser irónico: no boxe combate-se com a força do corpo e na política com a força das palavras.

A interpretação estava impressionante. Os atores representavam algumas vezes diretamente para a câmara e frequentemente de costas para o público. Fez-me perceber pela primeira vez a frase: "Um ator representa com as costas". Os atores conseguiram trazer uma intensidade, uma densidade e uma humanidade surpreendentes para cena.

O espetáculo termina e várias perguntas ficam em suspense, entre elas: serei eu muito diferente de um ditador? Não serei eu capaz dos mesmos males? Todos preferimos acreditar que não, pensamos nos ditadores como um caso à parte, como se fossem um defeito de fabrico. Pessoas que apresentam características humanas, mas que não são humanos, são diabos, o mal e a crueldade personificados. Contudo, penso que é precisamente aí que nos enganamos. É na humanidade que o bem e o mal habitam. Onde há bem, há mal.  Onde há a humanidade também há a falta dela. Deste modo, sendo todos humanos, somos todos capazes das maiores atrocidades. Todavia, o verdadeiro perigo reside, não na nossa humanidade, mas na nossa ingenuidade. No desconhecimento de que contemos em nós a nossa pior versão... A ingenuidade é perigosa, pois uma vez exposta a discursos intolerantes, ignorantes e apaixonados, faz nascer os maiores ditadores. Neste espetáculo percebemos, assim, que há um ditador em cada um de nós: qualquer um de nós pode ser o “Amigo H.”. 


TEMPESTADE AINDA

De Peter Handke

No Teatro Aberto


De 15 de dezembro a 29 de fevereiro de 2024

O fim da guerra trouxe paz? As personagens colocam-nos esta pergunta que, aos olhos de hoje, é até risível. A nível mundial, estamos muito longe de ter paz... O fim da Segunda Guerra Mundial prometeu uma paz que nunca chegou e que provavelmente nunca chegará, mas na qual continuamos a acreditar. Eu penso, como é referido na peça, que o mundo deixou de existir há muito tempo... Resta-nos, assim, viver na era dos "como se´s": "como se houvesse paz", "como se as pessoas não morressem à fome"... Na era do "faz de conta", do teatro... é claro que isto não acontece por acaso, enquanto seres humanos temos de arranjar mecanismos para lidar com o facto de não estarmos a evoluir para melhor. Estamos a avançar no tempo, sem dúvida, mas a cometer os mesmos erros de sempre. Para não vivermos então no desespero, temos de nos agarrar a alguma coisa e, por isso, agarramo-nos a esta ideia que nos foi vendida de "paz". Uma "paz" que não passa de um "como se".

A peça passa-se na região da Caríntia (Áustria). O escritor da peça: Peter Handke regressa à sua terra e recorda os seus antepassados. Narra-nos a história dos seus familiares durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Áustria integrava o Terceiro Reich.

O espetáculo fez-me sobretudo perceber que "os bons velhos tempos", num sentido lato e universal, nunca existiram nem irão existir. Irão sempre existir guerras, irá sempre existir fome, miséria... Os bons velhos tempos são bons, porque são memórias. E nas memórias a miséria e a fome não costumam ter lugar. É habitual esquecermo-nos das coisas más, são as boas que prevalecem. Os "velhos tempos" são bons depois de uma boa dose de esquecimento.

A língua é política. É através dela que comunicamos uns com os outros, faz parte da nossa identidade e da nossa cultura. O regime Nazi proibiu a população de Caríntia de falar a sua própria língua. Foi-lhes exigido que falassem alemão, sob pena de prisão. Proibir uma língua e exigir outra, é extinguir uma cultura e impor outra. A língua é feita dos falantes que a praticam, se deixa de ser praticada, vai morrendo e com ela a cultura, neste caso, a austríaca.

O espetáculo é um grande sonho febril, um delírio lúcido. É uma grande conversa de um Eu para um Eu, mas que na realidade é de um Eu para muitos e vice-versa.

Éramos poucos no público, o que foi uma pena. Na minha opinião, a sala devia estar cheia. Foi talvez o aplauso mais longo que já testemunhei, os atores vieram agradecer quatro vezes a palco.

Foram duas horas e quinze de puro prazer. A escrita em si é maravilhosa, é deliciosa, apetecia-me por momentos fechar os olhos e deleitar-me com as palavras e com as imagens que o texto invocava.

A música era catártica; é extraordinário o que um piano e um violoncelo são capazes de fazer juntos. Podia ficar a ouvi-los para sempre... No entanto, a música não se resumia a estes dois instrumentos, a voz assumia um papel central. Foi um espetáculo repleto de músicas em austríaco, português e em inglês. As músicas estavam muito bem articuladas com o espetáculo, não paravam de representar para cantar, tudo fluía. O cenário era igualmente espetacular, proporcionava-nos imagens lindíssimas, desde o campo verde à macieira da qual caíram inúmeras maçãs vermelhas no palco, às montanhas... Foi ainda muito interessante a forma como o local da morte estava delimitado no espaço (era circular e rodava). Na minha opinião, expressa a nossa condição humana: andamos a vida toda às voltas até um dia morrermos. 

Relativamente aos atores, penso que foram excelentes. Não senti grandes diferenças entre eles, em termos da qualidade da representação, havia um equilíbrio harmonioso e muito bem sustentado. As cenas nunca caiam, mesmo durante as mudanças de cena. Cada personagem era, porém, muito diferente, tinha uma corporalidade, uma forma de falar e de agir próprias. E estavam tão bem incorporadas, que nem sequer questionava, parecia tudo tão real... É uma peça longa e complexa, mas estava muito clara. Conseguia-se facilmente distinguir os momentos em que estávamos a assistir à vida passada das personagens dos momentos em que estas conversavam diretamente com o narrador.

No final da peça, mencionam uma tribo do Alaska. Poucos restam da tribo e vivem sentados, cada um por si. Apenas se levantam para acenar, para dizer: "Hey, estou aqui". Estes são os nossos antepassados, estes somos nós, é o escritor, é o público, é quem está a ler isto... somos todos. Vivemos todos neste permanente aceno, neste: "Hey, estou aqui" uns para os outros e ainda bem. Enquanto isso se mantiver, é porque não quebramos o contacto, é porque as vozes dos nossos antepassados e as nossas ainda não foram esquecidas, é porque a tempestade ainda não cessou. 

É um espetáculo muito bonito, onde os mortos conversam com os vivos. Fez-me sentir muito grato por ter memórias. Ter memórias é poder viver noutro tempo por breves instantes. É poder estar com quem já cá não está, é um privilégio. Os nossos antepassados vivem na nossa memória, vivem em nós. E nós neles. Acredito ainda que nós só morremos verdadeiramente quando somos esquecidos. Neste sentido, penso que Peter Handke, ao escrever esta peça, está a imortalizar-se e aos seus antepassados nas nossas memórias. Por outro lado, nos dias que correm, não seremos todos imortais? Afinal, vivemos na época da imagem, das redes sociais... onde os perfis não desaparecem, quando morremos. Será que nos tornamos então imortais? A que custo?


Electra

De Eugene O`Neill

Na Academia Artes do Estoril


De 18 de novembro a 17 de dezembro de 2023


Família Mannon ou Família Addams? Pouco parece separar estes dois universos familiares, visto que ambos apresentam um modelo "defeituoso" da "família perfeita" americana. São famílias ricas, macabras, terríveis e assustadoras, onde a crueldade e o sangue frio são o pão nosso de cada dia. Christine Mannon e Morticia Addams  são mulheres sensuais e que se assemelham a bruxas; Gomez Addams e Ezra Mannon são os patriarcas das famílias e são profissionalmente bem sucedidos; Pugsley Addams e Orin Mannon são rapazes muito ingénuos; Wednesday Addams e Lavínia Mannon são mulheres frias, mórbidas e apáticas.  É curioso que a peça sobre a Família Mannon tenha sido publicada um ano depois de terem sido publicados os primeiros desenhos da Família Addams.

Electra passa-se em New England (EUA) no final da Guerra Civil Americana. E parte da trilogia: Electra e os fantasmas de Eugene O´Neill, que se baseia, por sua vez, na trilogia de Ésquilo: a Oresteia. É, assim, uma versão mais atual da grega: onde Agamenon se chama Ezra, Clitemnestra Christine, Orestes Orin e Electra Lavínia. Mudam-se os tempos e mudam-se os nomes, mas as vontades mantêm-se. É uma peça que resulta da mistura entre a Grécia antiga, a história americana e a psicologia Freudiana.

A peça em si é, contudo, um pouco irritante, uma vez que conseguimos facilmente prever o destino de cada personagem. Por outro lado, penso que é também aí que reside o seu interesse.  Para além de nos remeter para o teatro da Grécia Antiga, a ideia da predestinação é abordada de uma forma inovadora e atual. Ou seja, é uma predestinação que não advém do divino, mas sim do psicológico. O seu psicológico, a forma como agem, como falam, os seus anseios e desejos levam-nos a traçar um fim que é o deles. Vemos uma família a destruir-se a si própria, motivada por uma força maior que não reside nos deuses, mas sim neles próprios. Tudo o que acontece é resultado do psicológico reprimido de cada um.

É ainda uma peça muito estranha por ser, como já referi, influenciada por Freud: vemos em Orin o complexo de Édipo e em Electra o complexo de Electra. Segundo Freud, estes complexos surgem na fase fálica, que ocorre mais ou menos a partir dos três anos. É nesta fase que as crianças formam a sua identidade masculina e feminina respetivamente. Durante este período, as crianças desenvolvem um desejo inconsciente pelo sexo oposto. No caso dos rapazes invejam o pai, por estar casado com a mãe e, no caso das raparigas, é o inverso. Neste sentido, as raparigas desenvolvem sentimentos de raiva pela mãe e de carinho em relação ao pai. E os rapazes o contrário. Assistir à peça é pior do que ler "Os Maias": o incesto é visível.  Está à nossa frente e dá-se em todas as vertentes: entre mãe e filho, filha e pai, irmãos... faz confusão, mete horror. Senti-me bastante incomodada durante a peça. Para além disto, é, sem dúvida, uma temática pouco abordada em cena.

Até onde é que vai a crueldade humana? E o desejo incessante de vingança? Deixaram de ser humanos? Estas foram algumas perguntas que me surgiram durante o espetáculo. Eu penso que o que os matou não foi a falta de humanidade, mas sim o excesso dela. Foi o amor que os destruiu. Era amor a mais, um amor que não é saudável, tão grande que se torna cego e obsessivo.

Os Mannon são pessoas ricas, asfixiadas pelas expectativas da sociedade, consumidas por uma vida que lhes foi imposta. Perguntei-me várias vezes durante a peça: porque é que eles não se vão embora? Porque é que não fogem e vivem em paz? Na minha opinião, eles não conseguem sobreviver sozinhos, eles precisam uns dos outros de uma maneira desesperada e, de certa forma, animal.

Eles vivem num ambiente tóxico e perpetuam esse ambiente. É um ciclo vicioso. Olhar para esta família é como olhar para hamsters a andar à roda numa gaiola sem parar.

Na peça há ainda uma certa confusão entre vingança e justiça: não nos cabe a nós fazer justiça. Nós não somos nenhumas entidades universais para termos essa função. Somos pessoas, a nossa função primordial e única é viver. Quando se faz justiça pelas próprias mãos, perdemo-nos e só nos resta viver com os nossos atos. A vingança atua sobre nós próprios.

O final da peça fez-me lembrar A Casa de Bernarda Alba de Federico García Lorca. A escolha de uma vida enclausurada, fechada do mundo e de todos, autopunindo os seus atos... Fez-me também perceber que o maior castigo para quem comete crimes deploráveis não é a morte. A morte é rápida, num instante tudo acaba. Viver com o que se fez é um castigo muito maior.

O espetáculo é algo repetitivo, tive a sensação de que estava a ver uma telenovela. A repetição funciona até um certo ponto, uma vez que nos dá a ideia de ciclo. Porém, parecia que estava sempre a ouvir as mesmas coisas, a ver as mesmas discussões, preocupações... E as falas, em si, repetiam-se.

Três peças compiladas numa só, com dois suicídios e dois homicídios. Confesso que não é nada fácil, todavia, não pude deixar de sentir o tempo parado durante o espetáculo.

O cenário assemelhava-se a um templo divino quando, na realidade, era um templo de ódio. É interessante pensar sobre a cor de todo o cenário: o branco. Esta está geralmente associada ao bem, a algo puro divino e a família Mannon passava essa imagem, de algo imaculado, divino e intocável. Contudo, é curioso ver como o branco pode ser tão sujo... O cenário assemelhava-se, na minha opinião, àquelas casas modelo que vemos no IKEA ou no Leroy Merlin, mas com pouquíssima mobília. São geralmente branquíssimas, porque não são usadas, ninguém lhes toca, é como se ninguém lá vivesse. A casa da família Mannon é apresentada como desprovida de qualquer tipo de marcas humanas; é como se fosse somente habitada por fantasmas e, de certo modo, era.  Para além disto, a caixa branca e de plástico que estava no palco despertou-me algum interesse, fez-me lembrar as caixas de plástico onde vêm as bonecas. A meu ver, era nessa caixa de objetos inanimados, que estava a pessoa mais viva da peça: o espectro. 

Gostei igualmente dos figurinos. Havia algo nos saltos altos que fazia parecer que as personagens caminhavam nesta corda bamba entre a humanidade e o fim dela: entre a vida e a morte. Relativamente ao som, a ópera pareceu-me desnecessariamente dramática. Se a peça já é tão dramática, porque adicionar mais drama?

Os atores deixaram-me, no geral, ligeiramente desconcertada. A perceção que se tem de uma peça não se devia dever maioritariamente aos atores, mas, honestamente, é um pouco inevitável. Pessoalmente, enquanto espectador consigo ignorar mais facilmente o cenário, o som, a luz, do que os atores. É através deles que temos um contacto direto com a peça. E infelizmente, raras foram as vezes em que me consegui desligar dos atores... Antes de prosseguir, penso que é importante referir que não irei mencionar nomes, uma vez que isso não é construtivo. Além disso, tudo isto é bastante subjetivo, a minha opinião é somente isso: uma opinião. Não quero, de forma alguma, desvalorizar ou minimizar o trabalho de ninguém. Dito isto, senti que estava a ver atores a representar e não as personagens. O que é válido se fosse essa a intenção, mas não creio que tenha sido. Contudo, houve alguns atores de que gostei bastante, que puxavam as cenas para cima e davam outro sabor à peça. Houve dois que me marcaram particularmente: o Tobias Monteiro (marinheiro cantor) e a Rita Calçada Bastos (espectro). Esta última, para mim, foi mesmo extraordinária. É de facto impressionante ver como é que uma atriz pode ter tanta presença sem dizer uma palavra durante todo o espetáculo. O meu olhar fugia imensas vezes para o fundo da cena para esta figura de branco que se encontrava com um olhar contemplativo, trocista. Um fantasma que ainda não existia, mas que olhava para os vivos com um certo ar trocista. (Claramente sabia o que ia acontecer). Havia uma tranquilidade no conhecimento da desgraça que era intrigante. Inicialmente pensei que esta figura misteriosa era Cristina Mannon, mas na realidade também podia ser Ezra, ou Orin, ou até todos os outros Mannon já mortos.  Contudo, o fascínio não residia na procura de um significado ou objeto de representação, mas sim na observação desta figura misteriosa branca, deste espírito que vagueava pelo palco...

Senti-me um pouco como a Lavínia Mannon, a Wednesday Addams ou a Electra enquanto espectador. Senti uma distância imensa entre a minha pessoa e o que estava a ver. Quanto mais os atores me tentavam aproximar do que era o psicológico daquelas personagens, mais eu me afastava da peça. Eu acredito que representar não é chamar a atenção chamando a atenção, é chamar a atenção para algo, não querendo chamar a atenção. No entanto, mais uma vez, isto é subjetivo: eu sou apenas um espectador entre muitos.

Apesar disto, a peça despertou-me a atenção. É um espetáculo sobre indivíduos perdidos numa sociedade perdida. Uma sociedade destruída pela guerra, pelos vícios, pelo poder e pelo dinheiro. O que provoca a tragédia são os psicológicos reprimidos dos indivíduos numa sociedade decadente.

Por fim, não posso deixar de dedicar umas palavras ao grande mestre do teatro: Carlos Avilez. Obrigada por tornar o teatro num espaço de conhecimento, de prazer e, sobretudo, de pensamento. Foi um encenador do qual o mundo do teatro nunca se irá esquecer e uma pessoa de quem todos sentiremos muita falta... Foi um grande privilégio poder assistir à sua última encenação.

O Teatro Ambulante Chopalovich

De Lioubomir Simovitch

Nos Recreios da Amadora 


De 18 de novembro a 3 de dezembro de 2023

"Atrás desta cortina brilha o mundo que à frente dela se apagou". O teatro tem esse dom de nos devolver a nossa humanidade. É no teatro que, muitas vezes, reencontramos a nossa sanidade. O que é estranho, uma vez que implica uma certa perda de sanidade. Consiste em tomarmos o lugar do outro, em sermos uma outra pessoa. E isto, fora de contexto, poderia ser considerado esquizofrenia ou outra doença mental. Porque é que ganhamos sanidade então? Porque é ao tirar as coisas do seu contexto que as conseguimos ver com uma maior clareza e imparcialidade.  O teatro dá-nos, assim, a oportunidade de sermos imparciais, de vermos de fora o mundo que tradicionalmente, vemos de dentro. Se não virmos de fora, nunca conseguiremos ter outras perspetivas sobre as coisas, continuaremos a ter as mesmas opiniões e atitudes... E isso não nos leva a lado nenhum.  Às vezes só precisamos de um espelho e o teatro é esse espelho vivo da vida humana.  Para além disto, contrariamente à nossa vida (cujas consequências das nossas ações podemos apenas adivinhar), no teatro temos acesso a uma vida com o seu meio e fim. Podemos perceber a relação causal entre as nossas ações e  as suas consequências. E, desta forma, aprender com isso. 

Antes de continuar, penso que é importante referir o seguinte: a peça passa-se numa cidade sérvia sob ocupação nazi na Segunda Guerra Mundial.  Uma companhia de teatro ambulante chega a esta cidade para apresentar uma peça. Contudo, são muito mal recebidos, quer pela população sérvia (que se sente insultada por andarem a "brincar ao teatro" durante a guerra), quer pela polícia alemã.

Qual é o lugar do teatro na guerra? Esta é, sem dúvida, a pergunta central da peça. O teatro como uma fuga saudável da realidade. A arte, no geral, costuma, proporcionar esta possibilidade. Contudo, em tempos de guerra, esta característica torna-se questionável.  Qual é o lugar do teatro na guerra? Tem de ser um lugar de intervenção? Não pode ser apenas um lugar de distração? De refúgio? Representar, nestas circunstâncias, é uma salvação ou um insulto? Rir, enquanto sabemos que pessoas estão a ser mortas, edifícios a colapsar, famílias a ficarem casa... é correto? Na minha opinião, é inevitável. Cada um lida com as coisas de forma diferente e, numa situação tão extremada como a guerra, se o teatro cair por terra, o que é que resta às pessoas? Viverem afogadas de preocupações, de medo? É isso que as vai salvar? Talvez as salve fisicamente, mas de que é que serve viver sem vida? Se vivermos mergulhados na realidade passamos a vida de luto, afogamos a nossa vida na bacia ou na bebedeira. O teatro é capaz de manter as pessoas sãs, nem que seja por breves instantes. Dá-lhes uma sensação de segurança, de normalidade, de descontração... que lhes são impossíveis no dia a dia. Numa guerra penso que cada um  deve ajudar com as suas valências. Porque é que os atores têm de combater, porque não deixá-los fazer teatro? E o teatro, tem de ser de intervenção? Eu penso que o teatro não tem de tomar lados numa guerra, pode apenas servir a sua função primária e entreter as pessoas. Se isto efetivamente acontece? Eu penso que não. Escolher o entretenimento não é já uma decisão política? Afinal nós somos seres políticos e, por isso, tudo o que fazemos é político. Escolher não intervir é também uma escolha e não deixa de ter as suas repercussões. E numa guerra, em particular, tudo é político. Além disto, é relevante dizer que nesta peça, a Companhia de Teatro Ambulante de Chopalovich decide representar um texto de Schiller. E escolher apresentar um dramaturgo alemão aprovado pelo regime nazi é escolher um lado: o lado dos alemães. Por outro lado, é evidente que os atores precisam de dinheiro para sobreviver. O teatro é o seu sustento. Neste sentido, esta questão não é linear. Idealmente, penso que num contexto de guerra o foco do teatro não deveria ser a propaganda de uma visão ou de outra. Deveria centrar-se em assegurar que a humanidade ainda não morreu, relembrar as pessoas do que é ser humano e do que é uma vida fora da guerra...
É uma peça trágica, mas com muita comicidade. E as doses de tragédia e de comédia estavam muito bem medidas. Os atores respeitavam o
trágico, (a guerra) e simultaneamente, deixavam emergir o cómico. Este surgia, não de uma forma insultuosa nem forçada, mas de uma forma natural, isto é, próprio das situações em que as personagens encontravam. A metateatralidade contribuiu maioritariamente para isto. São expostos problemas e vícios comuns ao trabalho de ator, sendo, para quem conhece, especialmente engraçado.

A peça é muito exigente e foi representada na íntegra, de uma forma muito fiel à escrita. Atualmente, é muito raro assistir a um espetáculo que é quase um reflexo do papel, sem cortes.

O espetáculo denuncia ainda uma série de preconceitos da sociedade em relação aos atores, que infelizmente ainda se sentem um pouco na atualidade.  Por exemplo, serem pessoas sujas, brejeiras...

Apresenta também uma temática muito relevante e que nunca tinha visto ser abordada em teatro: o perigo da representação. O perigo da mistura da realidade e da ficção e, consequentemente, da loucura.  A linha que separa o teatro da vida é muito ténue. Cabe aos atores fazerem este trabalho minucioso de gestão entre a ficção e a realidade, entregarem-se à personagem, mas não de uma forma completamente cega. É uma entrega com uma certa sobriedade, com uma certa consciência do que se está a fazer. Isto, infelizmente, nem sempre acontece, havendo atores que enlouquecem. Mergulham tão fundo que depois não conseguem voltar à superfície, esquecem-se de que há uma superfície ou de como foram ali parar, ficam maravilhados com a beleza do fundo... Uma das personagens desta peça encontra-se nesta situação, causando inúmeros mal-entendidos entre as SS e a companhia teatral, o que, inicialmente, é bastante cómico. Contudo, com o desenrolar da peça, vai perdendo a sua graça e torna-se muito triste. Vemos uma pessoa a perder-se no seu imaginário e a morrer por um mal entendido. É o teatro que o mata, como é referido no espetáculo.  Mas será que foi mesmo o teatro que o matou? A peça deixa-nos na dúvida...Será que ele, no final, ganhou consciência e cometeu um ato heroico? A verdade é que este pediu para o seu crânio ser doado a uma companhia de teatro como adereço. E isto é de uma frieza, de uma inconsciência total, que me deixa um pouco reticente em acreditar nesta segunda hipótese. Além disto, esta sua última vontade não deixa de ser muito cómica, deixando-nos um pouco desnorteados. Não sabemos o que sentir, nem o que pensar desta personagem. Na minha opinião, esta e o Triturador são as personagens mais complexas da peça.

O Triturador foi a personagem que mais me chocou no espetáculo. Nunca tinha visto um autêntico sociopata em cena. Uma pessoa sem moral, sem escrúpulos, que mata por gozo. Foi horripilante, porque parecia muito real. Contudo, foi ainda mais horripilante vê-lo ganhar humanidade. Este ganha humanidade, porque se apaixona. A moral de que o amor, o ser-se humano, consegue salvar as pessoas...  Esta é uma mensagem esperançosa, tendo em conta os tempos que correm, mas que não deixou de me perturbar. Afinal, nem sempre conseguimos ajudar quem não quer ser ajudado.  Outro aspeto interessante relativamente a esta personagem, é que não foi o teatro que a matou, mas sim a humanidade. Ao ganhar consciência dos seus atos, a vida tornou-se insuportável.

O espetáculo foi, na minha opinião, absolutamente extraordinário. Envolvia muitos atores, todavia, foi a primeira vez que não senti uma grande diferença entre os atores principais e os atores secundários. Todos estavam igualmente presentes. As movimentações dos atores assemelhavam-se a uma grande dança. O modo como se deslocavam, como reagiam, como conversavam... parecia que flutuavam no espaço. Os movimentos, sendo mais ou menos bruscos, tinham uma presença, uma energia que é característica do que, a meu ver, são bons atores. O trabalho de personagem também estava excelente.  Parecia tudo tão real... Havia uma simultaneidade de ações em palco muito bem sustentada, criando uma harmonia. Relativamente às mudanças de cena, estas eram claras, rápidas e bem articuladas. Eram assumidamente mudanças de cena, mas não quebravam a fluidez do espetáculo. 

O som e a luz eram adequados e coerentes e o cenário era multifacetado.  Foi interessante ver como é que um pequeno palco podia ser tantos espaços. Fez-me sobretudo perceber que não é necessário termos mil e um cenários diferentes, basta sabermos utilizar as coisas, tirar delas o essencial.

Foram duas horas e meia que passaram a correr, fiquei completamente embebido na trama. Senti-me um pouco como o que a companhia de Chopalovich ambicionava fazer o público sentir: distraído. Tive a oportunidade de me poder esquecer da minha vida e de acompanhar o percurso destas personagens.

O espetáculo levantou-me, como referi no início, uma série de perguntas para as quais não tenho resposta. A única coisa que posso dizer com alguma certeza é que, quer o teatro, quer a guerra prevalecem. Neste sentido, estas questões não vão desaparecer e é urgente continuar a pensar nelas. Acredito que é a pensar que o ser humano evoluiu. No dia em que deixarmos de pensar: estamos perdidos.

Antígona na Amazónia

De Milo Rau/NTGENT & MST

Na Culturgest


De 11 a 12 de novembro de 2023

Porquê a Antígona? E porquê esta viagem até à Amazónia?

A Antígona representa um "não". Um "não" ao autoritarismo. É uma personagem que viola deliberadamente a vontade do seu tio, Creonte, ditador da cidade de Tebas.  Ela sabe que vai morrer ao desobedecer às leis, que não vai mudar o mundo, mas não se importa. Opõe-se. E o mesmo se passa todos os dias no Brasil com as pessoas do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e com a população indígena. Ambos escolhem dizer "não" todos os dias e continuar a lutar, mesmo sob constantes ameaças de morte. Houve pessoas que correram risco de vida para podermos assistir a esta peça na sala quentinha e confortável da Culturgest. Antígona é uma mulher que quer enterrar o seu irmão. É uma pessoa que quer enterrar uma outra pessoa.  Enterrar o corpo é um ato humano. Um direito humano básico e inquestionável. Infelizmente, no Brasil isto não é nem básico nem inquestionável. Há corpos que não têm o direito de serem enterrados, até porque muitas das vezes não são sequer encontrados ou identificados. E de quem são estes corpos? São corpos de pessoas indígenas, de ativistas, negras, trans...

É importante esclarecer que o espetáculo se concentra essencialmente em duas questões, que não se devem confundir: o MST e os indígenas.  O MST é um movimento social e coletivo que tem como objetivo levar a cabo uma reforma agrária no Brasil. É um país com muitas terras, mas que pertencem a pouquíssimas famílias. Neste sentido,  as pessoas juntaram-se à procura de uma distribuição mais justa e igualitária, de uma terra melhor para os seus filhos viverem. A peça parte do massacre de 1986 ao MST. 21 ativistas mortos numa manifestação pacífica....  Além disto, é um espetáculo que alerta para as ameaças constantes de expulsão dos indígenas do seu território...

É uma peça que propõe um diálogo muito interessante com o passado. Uma Antígona que é indígena. Não escolhe ser ativista, nasce ativista. Os indígenas vêem-se na mesma posição que esta personagem, nascendo naquele lugar de subjugação, só lhes resta lutar. É lutar ou perder a casa. É lutar ou não enterrar o irmão. Milhares de séculos separam estas histórias, mas é assustador perceber que a luta é a mesma: direitos humanos.

Contudo, é também engraçado perceber as milhas que separam Antígona das mulheres do MST ou das mulheres indígenas.  Antígona é uma princesa, foi criada numa família nobre. Tendo tido, assim, direito a uma formação que estas mulheres não tiveram. Não é qualquer mulher que naquele período e contexto poderia dirigir-se ao rei e impor-se daquela forma. As mulheres das florestas, das favelas... são analfabetas.

É ainda relevante pensar na escolha do público. Porquê apresentar isto na Europa? Esta não é uma pergunta inocente. É um espetáculo feito por colonizados para os colonizadores,... Como é óbvio, ninguém do público tem culpa da colonização, mas é importante termos consciência de onde viemos para podermos fazer alguma coisa sobre isso. É muito interessante, como eles pegam num exemplo Europeu, numa história europeia, e invertem a sua perspetiva.

E porque é que é urgente apresentar isto na Europa? Porque, nós somos uns príncipes, como Hémon cantava. A Europa é um continente repleto de príncipes e princesas. Nós felizmente não sabemos o que é sentir e viver uma guerra no interior do nosso próprio território. Não sabemos o que é estar neste momento na Ucrânia ou na Faixa de Gaza. Estas peças são urgentes porque nos sensibilizam para o que está a acontecer no mundo, tornam-nos próximos de uma realidade cruel e distante... E, deste modo, capazes de, pelo menos, evitar que tais guerras aconteçam aqui também. 

É um espetáculo que mostra o processo de trabalho e é documental, uma vez que trabalha com o testemunho, com situações reais de pessoas reais. É, deste modo, uma peça onde o real e a ficção se confundem para denunciar o que se passa atualmente no Brasil.

O espetáculo foi particularmente inovador pela utilização do vídeo. Nunca tinha visto nada assim.  O MST, que eu pensava que iria estar presente em espírito, estava presente em corpo e alma, não de uma forma tradicional, mas de uma forma tecnológica. Conseguiram ainda trazer a Amazónia para o palco da Culturgest. E não de uma forma distante, própria da gravação... Parecia que tudo estava a acontecer em tempo real. Havia uma comunhão extraordinária entre as cenas que estavam a ser representadas em tempo real e as cenas que víamos no vídeo. O mundo do cinema e do teatro misturavam-se organicamente. Foi ainda curioso perceber que, apesar desta propensão para as inovações, havia uma propensão para a catarse. E esta dava-se tanto com a representação em tempo real, como com a gravação. Foi engraçado ver como é que estes dois mundos: o contemporâneo e o clássico podiam coexistir.   

A dramaturgia não era simples, envolvia muitas trocas de personagens, mas estas estavam muito bem articuladas e justificadas. No que diz respeito aos atores, foi a primeira vez que os vi, não como indivíduos, mas como porta-vozes de causas universais. Deram o corpo e a voz em prol de algo maior.

Em termos da interpretação e da conceção geral do espetáculo, este não podia ser mais Brechtiano. O espetáculo variava entre a narração, o documental, biográfico e a ação. A "quebra da quarta parede" (da parede fictícia que separa os atores do público) era uma constante. Os atores falavam diretamente para o público de um modo biográfico e documental. Havia uma desconstrução permanente das personagens. Esta questão, juntamente com os momentos musicais e a utilização dos dispositivos audiovisuais contribuíam para o "efeito de estranhamento" que Brecht propunha.

O som ganhava um papel de destaque sobretudo nestes momentos de corte, que referi. A guitarra embalava o texto, proporcionando um ambiente de confissão, de intimidade entre os atores e o público. Contudo, a luz inquietou-me um pouco. Porque é que nestes momentos de rutura a luz da plateia não estava ligada? Parecia que resistia à inovação.

Senti-me muito ignorante durante o espetáculo,  afinal como é que não sabia o que se estava a passar no Brasil? Todavia, confesso que me senti igualmente bombardeada de problemas. Claro que eles existem e é importante falarmos deles,  mas penso que a certa altura eram tantos que a peça se tornou um pouco confusa e dispersa.

Isto não me impediu, contudo, de sentir um arrepio a percorrer-me a espinha, quando a peça terminou. Todos aplaudiram e no espaço de 3 segundos quase toda a plateia se levantou. Foi uma sensação assustadora. Numa sala tão grande como aquela foi comovente.

Com o fim do espetáculo, restaram apenas milhentas questões por resolver: Qual é o lugar do poder e qual é o lugar da resistência? E qual é o lugar do teatro? É um espaço de intervenção? E para quê levar esta peça a cena? Afinal, as pessoas que morreram no massacre, estão mortas. Não há nada a fazer. No entanto, penso que é possível evitar novas mortes. Evitar que um possível assassinado não o seja. A última cena do espetáculo transpirava isto mesmo: uma esperança na mudança e no futuro. Propuseram um epílogo à tragédia de Sófocles, onde os mortos regressam à vida. Uma segunda oportunidade...É precisamente disso que precisamos.


ABSTRACT

Criação de Cão Solteiro e Vasco Araújo

No Teatro São Luiz


De 9 a 12 de novembro de 2023

  O que é o teatro? Quando é que deixa de ser teatro e passa a ser performance? O que é ser artista? Como é a vida de um artista?  Este é, sem dúvida, um espetáculo que nos deixa com mais perguntas do que respostas. Neste sentido, não consigo dar respostas definitivas, mas sim tentativas. Relativamente às três primeiras perguntas, eu concordo com o Alexandre Melo, penso que respondê-las é enveredar pelo mundo das ideias, pelo abstrato. Enquanto que responder à última pergunta é algo bastante concreto: a vida de artista é difícil, mal paga, imprevisível. Seguindo o pensamento abstrato, na minha opinião, este espetáculo caminha numa linha muito ténue entre o teatro e a performance.  Para além disto, considero que ser artista é escolher fazer o que queremos, como é referido no texto do espetáculo. É seguir um caminho de tentativas, confuso, instável. É nunca sabermos como é que o nosso trabalho vai ser recebido pelo público ou se algum dia estará pronto. Afinal, a arte é sempre inacabada. Ser artista é assim, é escolher um percurso repleto de copos de vidro despedaçados...

A cortina subiu e fiquei muito confusa. Um cão saltou do palco para a plateia... O que é que se está a passar? (Era o que pensava...)Quando olhei para o palco do Teatro São Luís completamente despido e simultaneamente repleto de coisas, os meus olhos gritaram. Foi a primeira vez que vi este palco enquanto espaço de ensaio:  viam-se todos os projetores, os figurinos de lado.... E, por todo o palco, estavam espalhadas caixas de cartão, copos de vidro, bolas de plástico, papel de cenário....Se o objetivo era chocar, foi cumprido. Era tudo muito cru. Neste espetáculo não existe uma linha narrativa e também não parecem existir "falas", pelo menos no sentido convencional da palavra.  São artistas a trabalhar no seu dia a dia, quase em tempo real. Era como se estivesse a espreitar por uma janela de uma oficina de artes plásticas e audiovisuais.  E da janela via-os a comer castanhas, a beber, a rir,  a fumar,  a cantar os parabéns, a ajudarem-se mutuamente...

Esta utilização do quotidiano em cena passava também pela simultaneidade de ações. Foi muito interessante, dava-nos a oportunidade de escolher para onde olhar. Do lado esquerdo do palco, um dos artistas tentava empilhar copos de vidro, construindo uma  espécie de árvore de natal ou pirâmide gigante; no centro palco, estava uma pessoa a desenhar no papel de cenário, sendo que, quando terminava, colocava o papel num monte enorme de outras várias folhas de papel; à direita desta, estava uma pessoa a encher, a empilhar bolas de plástico vermelhas e a grafitá-las; ainda mais à direita, estava outra pessoa a enrolar um material com vários metros de comprimento;  por fim, sem lugar fixo, duas artistas trabalhavam com a luz, o som e as projeções.. 

Outro aspeto bastante particular deste espetáculo era o seguinte: o foco não estava na interpretação. Esta passava despercebida, por estar tão próxima da realidade. O diálogo, por exemplo, era  muitas das vezes impercetível. Foi o primeiro espetáculo em que senti que o cenário, os objetos, os figurinos, o som, a imagem e a luz assumiam o "papel principal".

O som foi particularmente irritante e incomodativo. Contudo, eu penso que esse era o objetivo do espetáculo: deixar-nos com uma "comichão". A luz acompanhava o espetáculo: era, maioritariamente, uma luz de ensaio. Os figurinos eram muito inteligentes. Os atores começavam o espetáculo com roupa do dia a dia. Todavia, com o passar do tempo, experimentavam vários figurinos na esperança de encontrarem " O  Figurino".  Como é referido na folha de sala, esta mudança constante de figurinos pode ser vista como uma metáfora do processo de criação dos artistas. É um processo de tentativa e erro.  A vida de artista é, no fundo, uma vida de figurinos desajustados.

A utilização da ilusão de ótica foi algo que também me surpreendeu.  Esta ocorreu em dois níveis: através das imagens projetadas e através dos figurinos.  E fazia bastante sentido com o tema do espetáculo, isto é, com o abstrato. Todas aquelas formas retas, curvas, quadradas, triangulares... são abstratas. Ou seja, não pertencem ao mundo físico, mas sim ao mundo das ideias.  Foi ainda muito engraçado perceber que estas conjugações de formas criavam a ilusão de movimento em superfícies estáticas. Parecia que o teatro era um organismo vivo.

O único momento em que senti que estava a ver um espetáculo foi quando os artistas movimentaram folhas gigantes de papel de cenário. Conseguiram transformar algo tão simples em algo tão poético. Vi a Pietà , vi o "sorriso de um vento"...  Foi um momento que tornou bastante claro, para mim, a ideia de que as coisas não precisam de ter um significado à priori para serem consideradas uma obra de arte.  Em primeiro lugar, porque enquanto seres humanos  temos uma grande imaginação. Em segundo lugar, porque temos (talvez pela linguagem)  uma grande necessidade de procurar significados.  Procuramo-los a todo o custo, desesperadamente... Mesmo que o significado seja não ter significado... Nós precisamos de concretizar o abstrato. 

Foi um espetáculo que quebrou com todas as convenções e mais algumas. Não estava à espera. Quis odiá-lo, quis mesmo detestar o que estava a ver, porque senti que estavam a gozar comigo o tempo todo. Contudo, não pude deixar de ficar fascinada com a coragem que tiveram ao propor algo tão provocador e arrojado.  Para além disto, conseguiram despertar a minha atenção. Afinal,  como é que algo tão banal como o dia a dia de 6 artistas pode ser tão interessante?

Como referi várias vezes, senti-me desconfortável grande parte do espetáculo. Todavia, penso que isto foi uma sensação geral da plateia. O público ficou com medo e confuso. Essencialmente por ver a linha que separa os artistas da plateia a desvanecer-se. Mas não será, como Mary Ruefle (2017) refere, a função da arte pôr o espectador desconfortável?

O ABSTRACT foi uma série de "primeiras vezes" para mim, enquanto espectador. Nunca tinha visto a cortina a baixar e não voltar a subir para os aplausos, nunca tinha visto artistas a distribuírem os "guiões" do espetáculo a meio da peça... E nunca tinha visto uma obra de arte dentro de uma obra de arte a sair do palco e a percorrer o teatro. Foi inacreditável sair e ver que a obra se estendia até à entrada. Senti-me provocada, senti que a "peça" ainda não tinha terminado e que talvez nunca fosse terminar. Talvez a minha vida fosse, num sentido abstrato, uma continuação da que tinha acabado de presenciar.



Natálias: A partir da vida e obra de Natália Correia

Criação de João Borges de Oliveira e Manuel Jerónimo

No Espaço Boutique da Cultura


De 11 de outubro a 2 de novembro de 2023

De 17 a 20 de janeiro e 31 de janeiro a 3 fevereiro de 2024

Quem foi Natália Correia? Sabemos que foi uma poetisa, escritora e política, que nasceu a 13 de setembro de 1923  e que morreu a 16 de março de 1993. Sabemos também que é da ilha de São Miguel, nos Açores. Sabemos vários factos, podemos até conhecer alguns dos seus poemas. Contudo, a verdade é que nada disto responde à pergunta que coloquei. Esta peça tenta ultrapassar esta dificuldade e responder à pergunta em questão.  Dá-nos a ambiência, um cheirinho, um pedaço da vida do que foi a vida de Natália Correia.  E celebra o centenário do nascimento desta personalidade, que Portugal teve a sorte de poder chamar de cidadã. É uma pena que, na altura, sob o véu da ignorância da ditadura,  poucos tenham sido os que reconheceram o seu valor. Natália Correia foi uma mulher absolutamente extraordinária, atrevo-me ainda a dizer que, num certo sentido, ainda é extraordinária. Como a mesma o diz: "Quando me derem por morta/ de lágrimas nem uma pinga(...)/Não me chorem, não é morte/ é só invisibilidade". E a realidade é que os seus poemas, as suas declarações e as suas cantigas ainda prevalecem.

Natália Correia escrevia poemas, todavia, como ela refere, não os fazia para a literatura. Escrevia poemas para mudar o mundo. E, a meu ver, à sua maneira, mudou.

Natália era atrevida, inteligente, pagã, feminista, inconformista, cultural, política, indecente, sensual e maluca (Como Amália Rodrigues lhe chamava...).Muitos nomes lhe atribuíram e lhe atribuem, mas a realidade é que é impossível reduzi-la a uma série de adjetivos. Na minha opinião, a melhor forma de descrever Natália Correia é com o uso da palavra "Natálias".

Este espetáculo torna claro precisamente isto: Natália Correia não foi uma mulher, foi muitas. As "Natálias" que vemos em palco, não só se encontram em fases da vida temporalmente diferentes, como são fisicamente distintas. Umas têm caras mais redondas, outras têm caras mais ovais; umas têm o cabelo mais claro, outras o cabelo mais escuro... Natália foi todas estas mulheres nos seus poemas, nas suas canções e nas suas declarações nos salões e na Assembleia. Natália Correia foi todas estas mulheres, porque representou todas as mulheres durante o seu percurso enquanto artista e enquanto pessoa. Eu cada vez mais acredito que não há separação entre estas duas áreas: a arte e a vida. E Natália é a prova disso mesmo.

O espetáculo é marcante. Baseia-se no livro: O Dever de Deslumbrar, de Filipa Martins. Uma biografia de Natália Correia que, confesso que fiquei com vontade de ler.

Fumo, bebida, cantigas, comentários sobre a atualidade, declamação poemas, anúncio de novos poetas... era, em poucas palavras, o que se passava nestes salões literários. Quando entrei na plateia do Espaço da Boutique da Cultura senti-me nestes salões, em particular no famoso Botequim. O ambiente de fumo, a luz ténue, as mesas, os cigarros, os copos, a bebida e as 23 mulheres sentadas ou em pé, vestidas de preto com colares de pérola... fizeram-me recuar um século. Tive a oportunidade de, por breves instantes, conhecer pessoalmente o ambiente de Natália Correia.

O som tinha um papel particularmente importante nesta peça. Vários poemas desta autora foram transformados em canções, ganhando vida, na minha opinião. Neste sentido, o espetáculo envolvia muita música: momentos de coro, que foram muito bem conseguidos, momentos a solo e momentos em que somente se ouvia o piano. Tornando-se, por vezes, quase num ator em cena. Relativamente à luz, esta proporcionava este ambiente de salão, dando coerência às cenas. A imagem do fumo sobre a luz era bastante poética.

A interpretação foi muito bem pensada e articulada. Eu penso que nunca assisti a uma peça com tantas atrizes em cena simultaneamente. Não havia saídas de cena. Contudo, cenicamente tudo fluía e funcionava: algumas estavam sentadas, outras de pé; algumas com um copo de uísque na mão, outras a fumar;  algumas estavam mais destacadas a falar, outras a gesticular.  Havia ainda uma qualidade do movimento comum a todas as atrizes, de uma forma mais ou menos evidente, e que era, por sua vez, muito própria da Natália Correia. Para além disto, a alternância entre a narração e as "Natálias" de diferentes tempos tornou a peça muito dinâmica. Outro aspeto que também apreciei foi a diversidade das atrizes do elenco. Num espetáculo com tantas atrizes, há sempre umas que nos tocam mais do que outras. É inevitável. Umas falam mais de uma maneira, outras movimentam-se  mais de outra... Todavia, para mim, isso foi o mais interessante.  Foi o que tornou o espetáculo único, na minha opinião. Ouvir os poemas pelas vozes destas 23 mulheres, conferiram-lhes um significado universal. Um significado comum: várias vozes que são uma só. 

 A peça termina com dois versos, que ainda não me saíram da cabeça: "Estarei sentada no circo da Terra/até que o mágico tire pombas do coração". Saí da sala um pouco desconcertado. Afinal, a poesia tem destas coisas: consegue transformar algo tão cruel como a morte, em algo tão bonito.



As Alegres Comadres de Windsor

De William Shakespeare

No Teatro da Comuna


De 2 de novembro a 17 de dezembro de 2023

As Alegres Comadres de Windsor ou "Telenovela" do século XVII?

Esta peça é, sem dúvida, uma das comédias mais divertidas de Shakespeare. Contudo, tal como a maior parte das comédias do mesmo, apresenta uma série de características semelhantes ao que conhecemos hoje como telenovelas. Envolve muitas personagens, um enredo complexo, trocas de identidade, coincidências e termina com um final feliz. (Marcado por um casamento). Evidencia assim, um conjunto de traços dignos de fazer inveja às telenovelas. Talvez estas se tenham inspirado nas comédias shakespearianas...

Para além disto, outro aspeto transversal a estas comédias e às telenovelas é a falta de conteúdo e de profundidade. Conteúdo e profundidade, que conseguimos facilmente encontrar nas tragédias de Shakespeare. A meu ver, as comédias de Shakespeare são muito leves, tocam nos temas de raspão. Não há grande convite à reflexão, uma vez que o riso varre com qualquer tipo de pensamento filosófico. A peça em si é um pouco vazia. Senti falta de temas relevantes, atuais e da sua exploração. Em poucas palavras, penso que estas comédias são  como uma brisa: são ótimas no verão, mas no inverno, conseguem ser um pouco desagradáveis.

Gostei, todavia, das personagens da peça. Estas não só boas ou só más, são retratadas como pessoas reais. O reverendo Hugo Evans não é perfeito; as mulheres são fiéis e alegres, mas ao mesmo tempo vingativas; o Ford, é tanto um tresloucado ciumento, como humilde o suficiente para reconhecer que estava errado; a Quickly é uma mensageira e conselheira, mas que cobra tudo o que diz/faz;  Ana Page e  Flender estão apaixonados um pelo outro, mas fogem, à revelia dos pais de Ana Page, para se casar; Falstaff tenta seduzir duas mulheres casadas (entre outros), mas reconhece o seu erro.

É um espetáculo muito divertido, faz-nos rir do início ao fim. Deixa-nos no tal transe do espectador que  Aristóteles falava, e com as personagens rimo-nos, surpreendemo-nos, imaginamos, temos pena...É um espetáculo catártico. (O que é raro hoje em dia.) Foi bom perceber que esta forma de fazer/ver o teatro, ainda não se extinguiu.

Para além disto, apesar de ser feito de uma forma um pouco passageira, são abordados vários temas intemporais e universais como: a vingança, a lealdade, o assédio, a burla, o amor e a subestimação das mulheres. A vingança é retratada de uma forma um pouco assustadora, uma vez que aparece quase como algo justificado. As comadres assumem um papel semelhante ao do Conde de Monte Cristo, apesar de não chegarem a ir tão longe. Relativamente à lealdade numa relação amorosa, a peça denuncia a pressão e desconfiança exercida pela  sociedade na mulher. Isto é, infelizmente, bastante atual. A sociedade vê a lealdade como algo unilateral, como se o casamento não fosse algo a dois... O assédio também é representado no espetáculo e confesso que foi assustador ouvir risos durante esses momentos. Penso que só nos alerta para a urgência desta questão.  A burla aparece enquanto algo normalizado na sociedade, o que não é distante da nossa realidade. No que diz respeito ao amor, este surge como um herói face ao casamento combinado. Na minha opinião, Shakespeare escreveu esta peça para se reconfortar da tragédia do Romeu e Julieta.  Por fim, a subestimação da mulher por parte dos homens. Estes subestimam a inteligência e a perspicácia femininas. Veêm as mulheres como donas de casa, isto é, como uma espécie de "robots" domésticos, que não têm vida para além das quatro paredes. Contudo, as mulheres têm um papel preponderante na peça, é o poder de duas mulheres juntas que faz a peça progredir.
O cenário estava muito bem concebido. Era de fácil leitura e, por isso, simplificava o enredo. Relativamente aos figurinos, penso que encaixavam perfeitamente nas personagens, sendo de realçar os disfarces, que eram especialmente cómicos. O som e a luz eram bastante funcionais, marcavam claramente o início e o fim das cenas. Neste sentido, eram um pouco mais convencionais. Pessoalmente, não gostei muito, era a única altura em que desligava temporariamente do espetáculo. Contudo, reconheço que era necessário fazer mudanças no cenário.

Os atores fizeram um excelente trabalho. Em cena nunca vi os atores, vi personagens. E este trabalho de personagem estava extraordinário, porque era extremamente minucioso. Cada personagem é muito peculiar e, por isso, foi muito interessante poder ver a credibilidade dessas peculiaridades. Foi muito curioso perceber como é que mesmo na figura do reverendo Evans, com uma forma de falar tão própria, era tudo tão natural e percetível.  Além disto, é de louvar a leveza e a clareza que conseguiram dar a este texto. Deixou de ser tão denso e tornou-se simples, compreensível e cómico. A barreira da linguagem, que é frequente emergir quando se trabalha com textos antigos, neste espetáculo não foi uma questão.  Foi ainda muito engraçada a má representação intencional, levada a cabo pelas atrizes que faziam de comadres. Estava genial, gozavam precisamente com a imagem que passa pela cabeça da maior parte das pessoas, quando ouvem o nome Shakespeare. Atores pomposos, com braços excêntricos e dramáticos. Foi de chorar de tanto rir.

Não dei pela passagem do tempo. Foi muito agradável poder esquecer-me do meu papel de espectador, por uns instantes, e de poder somente viver a vida daquelas personagens. É um espetáculo que nos relembra que as relações de amizade e os momentos de riso e de alegria são essenciais à nossa vida. Diz-nos essencialmente isto: Não se esqueçam de se divertirem, de se rirem com os vossos amigos, de cometerem alguns erros de vez em quando... de serem humanos.



Europa

De David Greig

No Teatro São Luiz


De 18 a 29 de outubro de 2023

O que é a Europa? Foi a pergunta que me ficou atravessada o espetáculo inteiro. Antes de assistir à peça, a minha resposta era simples: a Europa é um continente. Contudo, mal a cortina subiu percebi que a Europa, esta palavra tão familiar, é um "palavrão" que ultrapassa a geografia. A Europa de Greig não é a Europa do Google Maps, é uma Europa simbólica. Mas simbólica em que se sentido? Para conseguir explicar isto, é preciso primeiro pensar sobre a ideia de sonho europeu.  O sonho americano designa uma esperança, um sonho de uma vida melhor, rica... É uma expressão mais conhecida globalmente, uma vez que consiste numa promessa material: no dinheiro. Mas o que é o sonho europeu?  Eu penso, que é uma promessa de paz, de uma paz europeia. Na sequência das duas grandes Guerras Mundiais, a ideia de Europa surge no continente como uma luz ao fundo do túnel. É uma promessa de proteção, baseada na ideia de que todos juntos somos capazes de progredir enquanto espécie humana. Proporcionava um vislumbre da paz, mas não passava disso, um vislumbre. E, face à destruição e ao desespero, foi uma ideia que se espalhou depressa e que quase se tornou real. Se esta ideia de paz europeia chegou a ser cumprida? Não. A Europa é uma utopia. É uma Europa que nunca foi, mas a que todos desejamos pertencer. Ser europeu é querer paz, não é ter paz. Greig escreveu esta peça,  enquanto assistia à Guerra da Jugoslávia. Seguiu-se a Guerra do Kosovo e da Macedónia e atualmente, a Ucrânia. Tudo dentro das fronteiras desta entidade colossal a que chamamos de Europa. Que Europa é esta então em que vivemos? É apenas um conjunto de países obrigados a viver ao lado uns dos outros e cada um por si? Ou são só alguns por si?

Um por todos e todos por um, até um precisar de ajuda...

É uma peça repleta de barulho que se faz ouvir.  Dá voz a quem não a tem na sociedade, aos marginalizados, colocando-nos inevitavelmente no lugar do outro. É impossível ficarmos indiferentes. É também uma peça muito atual. É triste perceber que 30 anos passaram e praticamente nada mudou. 

Abrange também vários temas importantes como: o racismo, a violência doméstica, a xenofobia, a homossexualidade, o amor, a desconexão, a violação, a solidão, a crueldade.

Para além disto, aborda de uma forma muito interessante o impacto das constantes mudanças do espaço económico-social na vida dos europeus. Como é referido na folha de sala,  é “Uma peça sobre um tema global numa escala Íntima”. Passa-se numa cidade fronteiriça no meio da Europa, pequena aos olhos do mundo, mas na realidade muito grande. É uma cidade sem nome, onde os comboios deixaram de parar, as fábricas começaram a fechar e o desemprego começou a chegar.  Com a falta de comboios e a deslocação das fábricas, a cidade deixou então de ter nome. Restaram apenas as pessoas, poucas foram as que se atreveram a sair. Grande parte ficou presa à cidade que em tempos conheciam, e canalizaram a sua raiva e frustração contra os emigrantes, os estrangeiros.  Sava e Katia são dois emigrantes, refugiados, provavelmente da Guerra da Jugoslávia. E é curioso  que eles também se referem à sua cidade, como uma cidade sem nome. Mas o que significa isto de não ter nome? Um sítio sem nome é algo que deixou de ser reconhecível, com o qual já não nos conseguimos identificar. (A guerra e grandes mudanças sociais e económicas fazem isto.) E o problema é que, quando deixamos de saber de onde somos, deixamos de saber quem somos, perdemo-nos. 

Os atores fizeram um trabalho absolutamente extraordinário. Eu já tinha assistido a algumas pecas dos Artistas Unidos, mas esta foi definitivamente a que me arrebatou mais. A peça em si é marcante, mas a forma como os atores davam vida a personagens, era comovente. Sentia-se ainda um grande espírito de equipa em cena, quer por parte de quem dialogava,  quer pelos atores que os rodeavam. Nada esmorecia, podiam estar 4 ou 5 atores em palco simultaneamente e o foco estar em dois, mas os restantes continuavam presentes. Estes movimentavam-se e deslocavam-se de uma forma orgânica, leve e sem tirarem a atenção de quem estava a falar. Cada cena era assim, uma espécie de quadro vivo, dava-nos a oportunidade de escolher para onde olhar. Para além disto, a interpretação era extremamente inteligente. Os atores tinham um domínio claro do poder da oposição e exploraram-na até ao limite. Num minuto estávamos a rir-nos dos bêbados a conversar no bar da cidade e no minuto seguinte estávamos a ver um emigrante ser pontapeado, urinado e cuspido.  Isto deixa o espectador especialmente incomodado, arrependendo-se inclusivamente de ter rido. Por fim, foi muito interessante assistir à sobreposição de texto, estava muito bem articulada e clara. E tornou particularmente evidente a ideia de que todas aquelas personagens se deixaram de ouvir há muito tempo. Não discutem com o outro, têm discussões com elas próprios, ou com a ideia que tem do outro.

Foram duas horas e vinte que passaram a correr, mas que me deixaram um buraco no estomago. No fim levantei-me para aplaudir, mas confesso que custou. Vou aplaudir a miséria, a violência? Foi uma pergunta que me passou pela cabeça, mas que penso que é, ao mesmo tempo, o maior aplauso que se pode dar a todos os que participaram neste projeto.

 A última frase da peça ficou a reverberar na minha cabeça: "Nós também somos Europa". Isto é mais do que nunca o que precisa de estar escrito em todos os jornais. Afinal, em que Europa é que queremos viver? Ou melhor, o que é que temos de fazer para ter paz?

O Salto

De Tiago Correia

No Teatro São Luiz


De 4 a 8 de outubro de 2023

Porquê ficar a morrer à fome, porquê ir para a guerra, porquê não ter liberdade....sabendo que lá fora há a possibilidade de uma vida melhor?  É preferível arriscar a vida, a morrer onde se está. O desespero faz isto às pessoas. 


Um salto é a distância que separa uma fronteira da outra. Nos anos 60/70 os portugueses estavam a um salto (fisicamente e metaforicamente) de uma vida melhor em Espanha ou a dois de uma vida melhor em França, que era o destino mais procurado.  Infelizmente, este é um dos temas menos falados na História de Portugal. Parece ter ficado perdido entre as páginas dos manuais...Mas porquê? Por que é que não se fala das condições miseráveis em que os portugueses viviam, especialmente no interior?  Eu concordo com o Tiago Correia, quando este refere que temos tendência para nos esquecermos do que é traumático. O que anteriormente era indescritível, atualmente pode ser traduzido como: "antigamente é que era bom" ou "os bons velhos tempos".

No entanto, ao contrário do encenador, penso que este espetáculo não é um salto entre tempos, mas sim um encontro entre tempos, nas suas habituais e infelizes circunstâncias. É um encontro que não acontece por acaso: vem reforçar a imutabilidade da natureza humana. Na minha opinião, por muito que tentemos, vamos estar sempre a debater as mesmas questões, apenas com diferentes nomes, locais e datas.

Esta peça choca-nos, confronta-nos com a realidade dos nossos pais ou avós, uma realidade difícil e que parece distante. Mas essa distância é uma mera ilusão, porque perto das nossas casas estão hoje refugiados à procura de abrigo, e nós sem conseguirmos recebê-los. É uma peça dura, mas muito importante porque desmascara os tais "bons velhos tempos" e alerta-nos, sensibiliza-nos para o que se está a passar atualmente. Na folha de sala o encenador refere que o objetivo deste espetáculo é "recordar que somos um país de (e)migrantes" para no próximo ano, quando apresentar outro espetáculo, "denunciar a forma como acolhemos" os refugiados. Contudo, apesar de defender que nunca é demais falar sobre este tema,  penso que este espetáculo fez, por si só, estas duas coisas que referi. Daí ter sido, para mim, tão impactante. Nós enquanto seres humanos, nunca nos conseguimos desligar do nosso tempo, do presente, da nossa história, da nossa sociedade. Nós somos seres sociais e, por isso, trazemos todas estas questões connosco a todo o momento. Ninguém fica indiferente a esta peça, precisamente por estar carregada de tanta atualidade. O que mexe connosco não é o passado que não vivemos, é o presente que estamos a viver. E por sermos seres humanos e, por isso, repetirmos erros, como já referi, vamos estar sempre a emocionar-nos com o que pensamos que é o passado, quando de facto é o presente. Nós emocionamo-nos porque nos identificamos e não o contrário.

Todavia, para um espetáculo ser bom, mais do que ter um bom tema ou texto, é preciso ter um bom cenário, desenhos de luz e de som, figurinos e bons atores. Eu gostei particularmente do cenário, era simples, mas comovente. Manteve-se durante toda a peça, mas sem perder o seu poder, a sua presença em cena. É um bom exemplo do que pode ser chamado de simples, mas eficaz. Era também bastante interessante, uma vez que  jogava com duas artes diferentes: o cinema e o teatro. O gravado, o filtrado e o imediato, o que conseguimos ver a olho nu, mais perto da realidade.  Durante praticamente a peça toda, estava bastante bem camuflado, uma pessoa a gravar a peça e essa gravação estava a ser diretamente transmitida por um projetor.  O meu olhar balançava entre o irreal, a projeção, e o real, o que está de facto a acontecer à minha frente.  Contudo, este balancear não era propriamente livre, uma vez que grande parte da ação só se conseguia ver através da câmara.  Esta articulação entre os dois foi bastante curiosa.  A certa altura questionei-me se estava a ver uma peça ou um filme; cheguei à conclusão que estava a ver um espetáculo híbrido e que o seu sentido reside precisamente nessa dualidade.  Olhando para o projetor, tudo parecia um sonho, ou melhor um pesadelo, isto é, algo irreal e distante. No entanto, olhando para o palco, tudo parecia real e, por isso, assustador.

Os desenhos de luz e de som, eram bastante claros e simbólicos, tendo funcionado bastante bem. Os figurinos e a caracterização dos atores também harmonizavam com a cena.

Os atores deixaram-me, porém, com algumas dúvidas em relação à peça. Dos 6 atores envolvidos, dois não me deixaram muito convencida. Na minha opinião, não conseguiram "desaparecer em palco", ou seja, não me fizeram acreditar na personagem. Eu não vou mencionar nomes, uma vez que isto é muito subjetivo e não é construtivo "apontar o dedo", como referi em críticas anteriores. Gostei bastante, todavia, dos restantes atores: a forma como agarravam cada cena era impressionante. E penso que foi essa garra que me fez levantar no final do espetáculo e aplaudir de pé.

 Em termos gerais, considero que a companhia A Turma fez um trabalho muito bom e indispensável para o mundo atual.  Se é o melhor espetáculo que já vi? Infelizmente, não. A verdade é que os atores, quer queiramos quer não, têm um papel preponderante na nossa perceção de uma peça. O ator é quem nos faz esquecer que estamos a ver uma peça, é quem nos transporta para um outro mundo. Durante esta peça, eu senti-me tanto nesse mundo, como sentada na cadeira do teatro.  Não obstante, penso que a peça aborda temas muito relevantes como a emigração, a emancipação da mulher, a guerra, a ditadura, a censura....sendo assim digna de ser vista. 




A Tempestade

De William Shakespeare

No Teatro São Luiz


De 13 a 24 de setembro de 2023

Figura 6, Musical, negro, ucraniano, pop. Assim é o Shakespeare provocador do S. Luiz e do Trindade – Observador


De todas as peças que li de William Shakespeare penso que esta é a mais "chata". A peça em si é "chata". E quando digo "chata" não é no sentido de ser aborrecida, mas sim de não ser extraordinária. Na minha opinião, as restantes peças de Shakespeare têm algo que as fazem ser extraordinárias. E "A Tempestade", contrariamente ao seu nome, é uma peça seca e com um final um pouco frouxo. Mas o que é que separa o frouxo do extraordinário? Eu penso que a resposta não está no conteúdo, isto é, na ausência de suicídios ou mortes, uma vez que o "Sonho de Uma Noite de Verão" termina relativamente bem, mas sim na forma; o final em si é fraquinho. O perdão e a redenção tinham tudo para ser gloriosos, contudo, não chegam aos calcanhares de "Crime e Castigo". Eu penso que Dostoevsky talvez tenha aprendido com o que, a meu ver, foi o fracasso de Shakespeare. As palavras gritam por ajuda e, honestamente, até eu me senti um pouco constrangida ao ler. E eu considero-me uma grande fã de Shakespeare.

Apesar desta questão, quando me sentei na plateia do Teatro São Luiz estava esperançosa; tinha esperança de que toda a equipa, ao trazer esta peça para cena, conseguisse torná-la extraordinária. Infelizmente para mim, isso não aconteceu. Antes de continuar, quero apenas esclarecer que todos somos pessoas diferentes e, por isso, temos opiniões diferentes. O que vou aqui exprimir é subjetivo e em nada diminuiu o trabalho de toda a equipa responsável por este projeto. 

Em poucas palavras, a peça não me "chegou", não me tocou...E eu não gosto de sair do teatro com esta sensação, ver tanto trabalho por parte dos atores, do encenador, da orquestra, dos figurinistas, dos cenógrafos...e sentir que, por alguma razão, a peça não me "chegou". Mas como é que explico este "chegar"? A peça não ecoou em mim, não reverberou, não me fez querer levantar no final e juntar-me à ovação de pé. Saí inclusivamente do teatro extremamente confusa, afinal não fiquei indiferente à peça. Aliás, esta teve momentos muito engraçados, outros cenicamente muito interessantes e a presença da orquestra foi absolutamente magnífica. Contudo, saí com esta sensação de vazio, não me fez refletir, não me deu aquele calor no peito, nada disso. O que é que aconteceu então? (Para além de não adorar a peça original...).

Gostaria de começar por abordar a presença do Coro do Festival de Verão-Projeto Participativo. Em termos da encenação e do movimento foi fantástico. A Paula Careto fez um trabalho excelente. Gostei particularmente do trabalho de movimento inicial, isto é, do coro enquanto mar/ tempestade. E a nível vocal, foi igualmente bom. Contudo, arriscaria com alguma certeza que, por serem cantores e não atores, estavam um pouco perdidos em palco. E isso desconcentrou-me: retirou-me do lugar de pura espectadora e colocou-me no lugar de crítica.

Alguns atores também me deixaram um pouco inquieta. Senti um nervosismo inicial como nunca tinha sentido antes. Houve também algumas palavras que não percebi e alguns enganos, porém isto não foi geral. Foram algumas pequenas exceções, mas que me marcaram particularmente. Não é relevante, todavia, dizer quem foi, porque penso que "apontar o dedo" não é muito construtivo. Apesar disto, atores como Hugo Mestre Amaro e Jaime Baeta fizeram-me rir imenso. Este último foi inclusive particularmente impressionante, uma vez que conseguiu dar vida a três personagens tão diferentes e de uma forma única.
Relativamente à Orquestra Metropolitana de Lisboa e à Kyiv National Operetta’s Theatre, gostei bastante. Foi uma oportunidade única poder ver uma peça do Shakespeare com música ao vivo, deu-lhe vida e sentido. Os cantores eram espetaculares e fiquei bastante surpreendida com o português de Anastasiya Martyniuk. É importante também referir que nada disto seria possível sem a música: 
The Tempest, Op.109 de Jean Sibelius.

Para além disto, penso que é de louvar a forma como o encenador António Pires conseguiu articular em cena dois atores e dois cantores de ópera em simultâneo, de forma tão clara e natural. A certa altura pareceu-me que estava a ver a mesma pessoa, que um era, de certa forma, a sombra do outro. Não tive a sensação de que estava a ver a dobrar, exceto na cena da bebedeira que foi inteligentemente encenada.

A cenografia também estava muito bem pensada e harmonizava com o desenrolar da peça.

Gostei igualmente da mensagem geral da peça: deste convite ao perdão e à redenção da humanidade, face às guerras, à luta por territórios, à destruição, à vingança...Esta questão aliada à presença da Kyiv National Operetta’s Theatre tornaram esta mensagem inspiradora numa mensagem essencialmente política. E afinal o que é a política sem o teatro?

Por fim, é evidente que este espetáculo, tal como tudo na vida, teve pontos positivos e negativos. Contudo, não é através de uma contagem que concluo se gostei ou não da mesma, uma vez que atribuo pesos diferentes às coisas. Deste modo, posso dizer que fico com pena que a peça não me tenha "chegado", mas fico contente por não me ter deixado indiferente.



Sonho de Uma Noite de Verão

De William Shakespeare

No Teatro da Trindade 


De 5 de março a 4 de maio de 2025

Sonho ou realidade? Deixei de conseguir distinguir um do outro à medida que a peça se desenvolvia, sentia-me tão enfeitiçada e embebedada como as personagens da peça. Pessoalmente, estava um pouco cético em relação a esta peça ser um musical. Já assisti a várias encenações da mesma, inclusive no Shakespeare´s Globe e não estou a mentir quando digo que esta foi a melhor que vi até agora. À espera de um musical puro e duro na sua pirosice, descobri uma sátira e uma genialidade musical que me fez rir do início ao fim. Os cenários, os figurinos, os músicos, as músicas, os atores...estava tudo absolutamente extraordinário. Conseguiram trazer para cena o essencial desta peça: o sonho, a magia, as cores e a confusão hilariante, mas fizeram-no de uma forma tão atual e portuguesa que me deixou boquiaberta.  Contudo, isto não seria possível sem a brilhante encenação de Diogo Infante. Encenador este, que também participou na peça enquanto ator, e, na minha opinião, fez um papel hilariante.

 É o tipo de musical que precisava e não sabia. O que inicialmente me parecia uma má atuação, fez-me chorar de tanto rir.

Se tivesse de resumir o que vi, diria que tudo começa com uma esperança num “Amanhã de Manhã” fora da Atenas, que é rapidamente morta por “Uma Pequena Flor”. E enquanto que, para Hérmia deixam de existir "Estrelas no Céu”, Helena, antes decidida a “Amar pelos Dois”, vê-se agora perante “dois amores” determinados a amá-la para “A Vida Toda." Dadas as doze badaladas,  conclui-se que "O Amor É Assim".

Para mim, agora é difícil imaginar um "Sonho de Uma Noite de Verão" sem estas músicas, todas encaixam perfeitamente, é quase como se sempre lá tivessem estado.

A atualidade da peça foi também algo que me surpreendeu pela positiva. As músicas contribuíram, mas o próprio texto adaptado e atualizado teve um papel importante. Inicialmente questionei-me: o que foi feito do Shakespeare? Afinal, o texto original estava maioritariamente presente em espírito. Contudo, acabei por concluir que foi reescrito por uma boa razão: para harmonizar com o resto do espetáculo. Todo o espetáculo transpira atualidade.  De repente o Puck deixa de ser Puck para ser Punk, os telemóveis passam a ser moda na Idade Média, as videochamadas um meio de comunicação comum e as selfies uma necessidade básica.

 A peça apresenta ainda uma meta teatralidade muito cómica. Tem certas piadas que penso que só quem está neste mundo do teatro, percebe. Põe a nu os vícios, os problemas e os erros mais comuns de muitos atores.

Por fim, penso que tudo isto não deixa de ser político. Esta adaptação da linguagem, este paralelismo com a realidade humana e portuguesa é, no fundo, uma forma de democratizar Shakespeare, isto é, de torná-lo acessível a todos os que o quiserem conhecer. 


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